Os Mortos de Sobrecasaca

"Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis, alto de muitos metros e velho de infinitos minutos, em que todos se debruçavam na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca. Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos. Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava, que rebentava daquelas páginas."

Carlos Drummond de Andrade, Os Mortos de Sobrecasaca (Sentimento do mundo, 1940)

domingo, 4 de outubro de 2020

Vai, foge Barão! Para onde, se me fazem Visconde?

 

Como contador de estórias que dizem que sou, resolvi partilhar uma pequena estória de família da minha querida mulher, Maria Amélia Teixeira da Mota da Costa Leme.


Maria Amélia Teixeira da Mota da Costa Leme.

H
á uns anos atrás, não muitos... 

Nasceu uma menina que recebeu o nome da sua avó paterna, Maria Amélia Pereira da Mota, brasileira de Fortaleza, neta do "brasileiro" Barão de Esposende, natural da terra, emigrante benemérito, cuja fortuna usou em parte para financiar a construção da ponte de ferro de Fão, em Esposende. Valeu-lhe o título de Barão, numa altura em que aos beneméritos e financiadores da coroa portuguesa, principalmente nos reinados de D. Luís I e D. Carlos I, eram dados títulos como reconhecimento, que levou ao surgimento de uma nova aristocracia. 
Almeida Garrett caricaturou a nova mudança na sociedade, com tantos novos títulos a surgir, através da célebre frase - "Foge cão que te fazem Barão! (respondeu o cão) Para onde, se me fazem Visconde?" 

Maria Amélia Pereira da Mota
e filho José Manuel da Costa Leme.

Barão de Esposende,
António Pereira da Mota.
Baronesa de Esposende,
Sizínia Amélia Purga
 da Silva.

Esta menina, nascida no Lobito, em Angola, era filha de Maria Teresa Corte Real Teixeira da Mota, Senhora da Casa da Cruz e descendente da velha aristocracia portuguesa com ramo na alta aristocracia francesa, da época do Rei-Sol, Luís XIV, e de José Manuel da Costa Leme, primo e também ligado ao mesmo ramo da aristocracia francesa da mulher.
     Brasão da família Teixeira da Mota
 (Barros, Macedo, Teixeira e Mota).



Anne de Chabot de Rohan, Princesa de Soubise.
Viveu no Palácio de Versailles e foi uma das amantes preferidas de Luís XIV.
O seu marido, François de Rohan, Príncipe de Soubise,
da velha aristocracia francesa e primo da mulher,
consta que recebia quantias avultadas para manter
 os caprichos do rei francês.
Aliás um dos filhos (ou mais),
que foi Cardeal, era filho ilegítimo da princesa e do rei.


Solar da Cruz, Casa Mãe da família Teixeira da Mota, em Gagos, Celorico de Basto.
Anos 20 do século XX.

Escadaria do Solar a Cruz.




Visconde de Negrelos, Montariol e Barão de Esposende, José Manuel da Costa Leme, era engenheiro civil, cuja atividade foi principalmente desenvolvida nos portos de Angola. Filho de um convicto republicano, Américo Francisco da Costa Alpoim, diplomata, que foi cônsul na Suíça e Secretário-Geral de Bernardino Machado, Presidente da República.

Visconde de Negrelos, Montariol e
Barão de Esposende
Eng. José Manuel da Costa Leme.



Américo Francisco da Costa Alpoim.

O seu filho degenerou! Era um monárquico convicto, excelente pessoa certamente. Mas o destino pregou-lhe uma partida... A filha a que deu o nome da sua mãe, nasceu no dia da implantação da República em Portugal, a 5 de outubro. Não! Filha dele não nasceria na data do fatídico dia! E a solução foi registá-la como tendo nascido no dia anterior, a 4 de outubro! 
Desde então a data do aniversário desta menina passou a ser celebrado naquele dia! Maria Amélia não podia fazer anos no mesmo dia da República.

A família e amigos no batizado da filha Maria Filipa Teixeira da Mota da Costa Leme, no Lobito, em Angola. 


Enfim, curiosas estórias de família que ditam o destino de quem se vê envolvido nelas.

Maria Amélia e a mãe Sra. D. Maria Teresa Corte Real Teixeira da Mota
no carro da família, um famoso Princess.



Dedicado à minha "Baronesa" Maria Amélia.







sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

"Five o'clock tea" - Um chá com amizade e bons annos

Numa pela madrugada escura e húmida, sem sono o Castro resolve fazer um chá.  Não às 5 da tarde, mas às 5 da manhã. Estranho, não? Sem sono e tomar chá, um excitante, mas o Castro é assim, gosta de ser original e contrariar o óbvio.
Fotografia Isabel Florentino.
Chávena de chá Isabelina, cujo nome deriva de Isabel II de Espanha que em pleno séc. XIX introduz o hábito de oferecer chávenas com dizeres remetendo para sentimentos ou desejos.
Rainha Isabel II de Espanha.
D. Catarina de Bragança,
Casa-Museu Medeiros e Almeida.
Numa chávena de chá dizendo "Amizade" cai a famosa bebida quente e escura, introduzida por D. Catarina de Bragança, filha de D. João IV e D. Luísa de Gusmão que casou com o rei inglês Carlos II em 1661 e como requintada Senhora, não fosse ela portuguesa resolve introduzir o costume do "five o'clock tea" na aborrecida sociedade inglesa. Só ficaram a ganhar! Mais quentinhos naquela clima frio e húmido tomando chá naquele recipiente já muito antigo, a chávena (do malaio chavan ou do chinês Cha-Kvan) que se espalhou pela sociedade ocidental através de uma portuguesa, rainha consorte de Inglaterra.
O Castro com dias...
Naquele chá a ferver, o Castro sobra para este arrefecer, pois detesta coisas muito quentes e refletido na bebida vê e recua ao passado, ao seu passado, às suas memórias... Recuando, recuando, recuando, lembra-se de percorrer um longo e antigo corredor num triciclo cujos seus pés sempre andaram no chão, com poucos brinquedos, velhos, vindos ou oferecidos de outros. Durante anos nunca teve nada verdadeiramente seu ou cujo sentimento ou desejo tenha sido o de oferecer a si!
A "Amizade" dos outros, não era para ele, pois amigos gostam de oferecer, dar, sem nada em troca, apenas o ato de agradar ou mimar o outro.
E o Castro lá foi arrastando o triciclo pelo longo corredor durante mais uns anos, até já não caber nele... As memórias são tramadas, ficam e marcam a vida mesmo sem que nos apercebamos!
O Castro com a irmã.
Cresceu, brincou, a maior parte do tempo sozinho, gostava de construir casas, carros com molas da roupa... E lá se entretinha caladinho sem chatear ninguém. Deve ser daí o constante desejo de sempre construir algo, faz e desfaz, constrói e destrói, sempre na busca da perfeição.
Mas voltando atrás, como sempre, recuando, mas desta vez no texto, as "coisas", os bens materiais independentemente do valor passaram a ser inconscientemente importantes, uma ambição, não uma ambição de TER, do PODER, mas uma ambição de ter apenas aquilo que nunca teve e desejava.
Assistência do Hipódromo de Belém. Lisboa.
Fotografia de Joshua Benoliel, 1909.
O Rei D. Manuel II cumprimentando a mais fina sociedade lisboeta,
 no Hipódromo de Belém.
Fotografia de Joshua Benoliel, 1909.
Com a idade surgem os gostos, os interesses e claro que o Castro associou-os aos bens materiais. Gostava de História, lia sem parar os livros da escola da sua irmã mais velha, absorvia tudo o que era Passado, gostava de perceber, de entender e claro a imaginação fazia-o recuar no tempo e "viver" as diferentes épocas. Não todas, algumas eram chatas! Interessantes eram as múmias, as pirâmides, o livro dos mortos, os tesouros, tudo isso o fascinava, tal como fascinou a mais fina sociedade do séc. XIX. Aliás como o Castro gostaria de ter vivido nos anos de 1800, e viveu... No pensamento e também no local onde a mais fina sociedade lisboeta do séc. XIX e início do XX passava o seu tempo de "rien faire". Aquele longo corredor tinha memória! Uma memória de 1890, altura em que a casa onde nasceu foi construída e que "viu" as corridas de Ascot à portuguesa. Refiro-me ao Hipódromo de Belém, que existiu nas traseiras da sua casa e fez as delicias das senhoras de requintados chapéus, tez pálida, sempre protegida pelas sombrinhas e os senhores de chapéu de coco ou cartola, que entre todos eles murmuravam a vida alheia, um pouco como hoje, sempre à espera de ver quem chegava e era o mais importante, naquela altura o rei e tentar se destacar. Como o tempo não muda!
Equipa da antiga Direcção-Geral dos Edifícios
e Monumentos Nacionais - DGEMN, onde
o Castro trabalhou e foi feliz, muito feliz.
Forte de Sacavém.
Mas passa, passou para a casa do longo corredor, que felizmente ainda existe, para o hipódromo que infelizmente foi destruído e para o Castro que lá seguiu os seus gostos e interesses pela vida profissional. A memória das coisas, dos objetos, das casas, das igrejas EXISTE! Pelo menos é assim que o Castro sempre pensou.
Bons tempos, BONS ANOS, felizes a fazer o que gostava, fazer o que mais lhe dava prazer, viver o Passado, dar-lhe a importância que a maioria recusa ou ignora. Pena, muita pena! Triste aquele que não tem memória, triste o país que não tem História!
Chávena de chá Isabelina com o dizer "Bons annos".
Realmente o passado explica sempre o presente, recuando mais uma vez, também no texto, deve ser por isso que o Castro sempre quis e "ambicionou" ter, desta vez não brinquedos, mas objetos antigos, com história, com memória. Tudo isso o fascina, ter, ver, admirar e imaginar o que aqueles objectos, sejam obras de arte, sejam simples objetos do longínquo quotidiano "viveram", "viram"... Sim, porque a matéria, os bens, também têm olhos, só que não os vemos, estão escondidos por baixo de requintados dourados, flores, formas finas e reboscadas tal como as chávenas Isabelinas dos dizeres!
Visita às minas de volfrâmio de Cerva, em Ribeira de Pena
que deram uma estória para este blogue.
E a história continua, a vida do Castro continuou, mais uma vez fez aquilo que gostava, escrever, investigar, saber o passado, preservar a memória através deste blogue que deu o nome "O Castro Manco", dedicado ao seu trisavô manco, brasileiro torna viagem, à sua bisavô, cuja história de amor podia ter sido escrita por Camilo Castelo Branco e pelas famílias da sua querida terra do coração, as Terras de Basto, Mondim, Celorico, Cabeceiras, todos com Basto (e não Bastos!) no final e Ribeira de Pena. "Bons annos", umas vezes sozinho a ver, investigar, outras vezes acompanhado, divertindo-se, rindo e comovendo-se por vezes com as duras vidas de pessoas que já cá não estão mas deixaram a sua pegada, pelo que fizeram, pelas gerações que vieram e pelas fotos que preservam os rostos, os trajes, as tradições, o que tudo era e acabou.

Faz 3 anos que não escrevo! Perdi a inspiração, talvez... Mas hoje voltou, mas será a última do blogue "O Castro Manco", a que mais me diz, a estória ou história do Castro, ou seja, EU.
Devia isto a que sempre me seguiu, a quem sempre leu e elogiou o que eu escrevi sobre as pessoas de Basto, devia isto, um FINAL

E o chá acabou, já morno, com o açúcar no fundo da chávena Isabelina. Afinal o sono voltou.

Até breve, num outro blogue, num artigo ou quem sabe um dia num livro, sempre com a vontade que o tempo não apague as memórias do Passado...
Chávena isabelina com o dizer "Bôas festas".



sábado, 5 de novembro de 2016

Alma boémia - Uma viagem de Celorico de Basto ao Rio de Janeiro

Eça de Queirós uma vez terá dito que o português do Brasil era um português com açúcar, falado de uma forma doce e alegre, com "ginga"! Mas serão os portugueses pessoas carrancudas, que não gostam de alegria e diversão?

Festa de Carnaval na casa de José Camello Teixeira, no dia de aniversário da sua mulher Glória.
Ao centro, de pé, José Camello Teixeira com um chapéu árabe "tarbouch".
Ipanema, Rio de Janeiro, 1935.
Fotografia gentilmente cedida pela família.
Não, claro que não! E a prova está aqui nesta história, a história de um "doce" português das Terras de Basto que cedo emigrou para o "doce" Brasil e consigo levou a sua "alma boémia".

Vamos recuar no tempo, por terras de norte de Portugal, em Celorico de Basto... Vamos até ao dia 24 de outubro de 1885, dia em que foi batizado José Camello Teixeira, nascido na Freguesia de Borba da Montanha, filho de João Teixeira Camello e Ermelinda Pires. Pertencia a uma família numerosa, de nove filhos, cinco rapazes e quatro raparigas, do lugar de Quintela. O desejo de seu pai, tal como o de muitos pais da época do pobre e rural Minho era que os filhos, mal fossem adolescentes, emigrassem para amealhar fortuna. Uma riqueza conquistada com suor e lágrimas de saudade no grande e promissor país irmão, o Brasil.

No dia 12 de janeiro de 1899, José Camello, de apenas 13 anos com o rosto marcado de borbulhas trazidas pela tenra idade, e o seu irmão Domingos, de 15 anos, pedem passaporte para irem para o Rio de Janeiro. O outro irmão, Manuel irá ter com eles mais tarde. A mãe Ermelinda ficou tão desgostosa com a partida dos filhos... Dizia que morreria, jamais iria aguentar a separação! Segundo a tradição oral familiar morreria pouco tempo depois com um ataque cardíaco em plena feira de Celorico de Basto. 

Registo de Passaporte de José Camello Teixeira e irmão Domingos, 12 de janeiro de 1899.
In Arquivo Distrital de Braga, Registo de Passaportes, 1 de fevereiro de 1896 a 6 de fevereiro de 1899.
Entrée de Rio: De Nova Cintra, c. 1890.
Baía de Guanabara, Rio de Janeiro, Brasil.
Fotografia de Marc Ferrez, acervo Fundação Biblioteca Nacional.
In brasilianafotografica.bn.br

No dia 12 de janeiro o navio que os levava entra na Baía de Guanabara e ao fundo a deslumbrante cidade maravilhosa do Rio de Janeiro! Com eles chegaram mais dois amigos feitos pela ocasião, José Dias Corrêa e Manuel de Carvalho. Ficariam amigos para sempre do "Seu Camello".


Vista geral do centro do Rio, destacando-se a Igreja da Candelária,
cuja construção iniciou-se em 1775.
Fotografia de Marc Ferrez, 1886, Rio de Janeiro, Brasil.
In literaturaeriodejaneiro.blogsopt.pt
Ao desembarcarem no reboliço da agitada cidade tropical trataram rapidamente de procurar trabalho. O destino quis que o Seu Camello encontrasse trabalho num bar de um alemão, na rua General Câmara, nº 246, em pleno centro, perto da famosa Igreja da Candelária.

Rua General Câmara, onde se situava originalmente
o Bar Bico Doce. 1920, Rio de Janeiro, Brasil.
Como a maioria dos emigrantes começou por baixo, mas como pessoa trabalhadora e séria que era rapidamente conquistou a admiração do patrão. A ânsia de poupar era tanta, provavelmente para não desapontar o pobre pai cheio de esperanças de ver o filho triunfar na vida, que pedia ao patrão para guardar todo o salário ganho, apenas ficava com as gorjetas para os gastos necessários. Gastos... Seriam poucos certamente, pois dormia também no bar, talvez alguns gastos com a sua boémia "incontrolável"!

Um dia o seu patrão morreu e a viúva como não tinha dinheiro para lhe dar os salários guardados propôs a venda do bar, e assim foi... A 4 de fevereiro de 1909 nasce o famoso bar carioca "Bico Doce - Refrescos e bebidas finas, chopps e sandwiches - J. Camello Teixeira". 

O negócio foi correndo de vento em popa! No seu bar, frequentado também pela elite carioca, eram presenças assíduas o famoso intelectual, deputado, senador e ministro Ruy Barbosa e o Barão de Rio Branco.

E o Seu Camello foi cada vez mais mergulhando na boémia carioca. Festas, noitadas, muita farra, bebida, mulheres... Adorava divertir-se, e claro o culminar da diversão era o Carnaval carioca, com o ritmado samba. Metia-se em tudo, bastava ouvir o som do pandeiro e do cavaquinho e lá estava ele, no samba. Não foi por acaso que foi diretor de duas agremiações carnavalescas.

Mas, um dia a alegria da vida noturna foi ofuscada pela luz do dia. Conheceu o amor da sua vida!

José Camello Teixeira e Glória Siqueira da Vinha no dia do seu casamento civil. Rio de Janeiro, 1916.
Fotografia gentilmente cedida pela família.
Chamava-se Glória Siqueira da Vinha, brasileira, filha natural do negociante português José Ribeiro da Vinha e de Prudenciana Siqueira. O seu amor encontrou-o na casa do seu amigo de viagem, o Corrêa. A jovem Glória, já orfã de pai, de apenas 14 anos estava lá hospedada, depois de ter saído de casa por desavenças com a sua mãe Prudenciana por não concordar com o seu terceiro casamento. Achava ela que este homem só lhe traria a desgraça e a dilapidação da fortuna deixada pelos dois maridos anteriores. E o futuro daria-lhe toda a razão!
3º casamento da mãe de Glória, D. Prudenciana Siqueira, com António Alves
Correia. Foram padrinhos José Camello Teixeira e sua mulher. Na foto estão
também presentes os parentes, os amigos Corrêa e Carvalho com as mulheres.
Rio de Janeiro, 1917.
Fotografia gentilmente cedida pela família.

Seu Camello foi conquistado pelo estômago, provou na casa do amigo uma deliciosa aletria feita pela Glória e ficou rendido pelo doce e pela jovem. Já diria o povo, "adoçou-lhe a bico" e o "bico doce" já ele tinha!

A diferença de idades entre ambos ainda era grande, mas mesmo com os curtos 14 anos de Glória e os maduros 31 anos de Seu Camello, casaram no dia 7 de outubro de 1916.

Seu Camello estava doente... A vida desregrada da sua alma boémia tinha-lhe trazido muitos problemas de saúde, mas o amor curou-o literalmente! A "comidinha" e os cuidados da sua mulher, agora chamada de Glória Vinhas Teixeira, devolveram-lhe novamente a saúde, quase milagrosamente o figado afetado pelo excessos da noite regenerou, com uma ajudinha também de temporadas na Estação de Águas de São Lourenço, em Minas Gerais. Realmente o AMOR verdadeiro tudo cura!

E pouco tempo depois vieram os frutos desse grande amor, em 1918 a filha Ermelinda e em 1920 a filha Luíza.

A boémia de Seu Camello ficou-se pela sua alma e pelos seus prósperos negócios dos bares do Bico Doce e do Fluminense Football Club. Tornou-se um verdadeiro homem de família, apesar de continuar com um pé no samba!
A família toda junta, com José Camello Teixeira,
Glória Vinhas Teixeira e as filhas Elza, Ermelinda e Luíza.
Porto, 1922.

Ermelinda, Elza e Luiza.
Porto, 1922.
Fotografia gentilmente
 cedida pela família.
Mas depois de tantos anos longe da sua terra natal, chega uma carta do seu pai para o irmão Domingos para que este voltasse a Celorico para tratar de problemas da herança. O irmão de costas voltadas para o pai, pois sempre o culpou da morte da mãe, recusou-se a ir. Seu Camello arranjou uma solução... O irmão Domingos ficou à frente dos seus negócios e ele e a família foram para Portugal passar uma temporada e resolver a questão da herança com uma procuração passada por Domingos. E lá foram eles num vapor de luxo, com bábá para as crianças, em setembro de 1921. A chegada não podia ser mais esplendorosa para os olhos do seu pai que tanto ambicionava com a chegada do "brasileiro torna-viagem" que havia triunfado na vida.

No Porto, em 1922, nasce mais uma filha, a Elza, que ficou conhecida como "a portuguesa". Ela e a Luíza são batizadas em Cabeceiras de Basto.

Mas a estadia em Portugal acaba quando Domingos envia uma carta a dizer que os negócios precisam urgentemente que o irmão regresse! E assim foi... Mas levam mais uma pessoa, uma "pessoinha", Glória vai grávida da filha Lourdes.

Inauguração da nova casa em Ipanema, na Rua Prudente de Morais nº 202,
atual 504. Em baixo o casal e em cima, na varanda os filhos.
 Rio de Janeiro, 1932. Fotografia gentilmente cedida pela família.
Toda a família Camello Teixeira na
cascatinha da Floresta da Tijuca.
Rio de Janeiro, 1935.
Fotografia gentilmente cedida pela família.
A situação financeira novamente estabiliza e cresce com a astúcia e "olho para o negócio" de Seu Camello. Em 1927 nasce mais um filho, o tão esperado filho varão, a quem deram o nome de João. E com a família tão grande, resolve então construir a sua casa de família no famoso bairro de Ipanema. Em 1932 toda a família muda-se para a nova casa, uma bonita vivenda que espelhava todo o esforço do emigrante que tinha vindo de Celorico de Basto com o sonho de fortuna.

Mas de repente a sombra do destruidor progresso abateu-se sobre o Bico Doce... Em plena Segunda Guerra Mundial, frequentado por alemães e ingleses, que o Seu Camello mantinha em clima de paz, chegou a notícia que o bar iria ser demolido! Aliás iriam ser derrubados bairros inteiros em pleno centro histórico do Rio para dar lugar à obra faraónica da Avenida Presidente Vargas, sonho de Getúlio Vargas para a sua capital. Até a famosa Praça Onze onde na altura eram feitos os desfiles das escolas de samba e centro da boémia carioca foi quase destruída e drasticamente reduzida.

Avenida Presidente Vargas inaugurada a 7 de setembro de 1944.
In historiadorio.wordpress.com
Paciência... Veio tudo abaixo! Mas o Bico Doce renasceu como uma Fénix noutro local da cidade, no Beco das Cancelas, entre as ruas do Rosário e de Buenos Aires. Local bem mais pequeno, mas que manteve o espírito boémio que tanto o caracterizava e o mais importante de tudo, o Seu Camello atrás do balcão, com a sua "paciência de Jó", aconselhando prudência no consumo alcoólico. Até parecia que não queria fazer negócio! Claro que não, mas como a sua experiência já era "velha como o diabo" preocupava-se com todos. Chegava até a levar a casa aqueles que adormeciam inebriados com cerveja e cachaça.
Comenda atribuída a José Camello Teixeira
da Irmandade do Santíssimo Sacramento
da Candelária.
Fotografia gentilmente cedida pela família.

Mas Seu Camello não era homem de poucas paixões, além da família e do Bico Doce, havia uma terceira, a religiosa, a de Nossa Senhora da Candelária. Pertencia à Irmandade do Santíssimo Sacramento da Igreja da Candelária, que o agraciou Comendador e Irmão Benemérito em 1954. Foi uma vida dedicada durante 67 anos como diretor do culto.

Celebração das Bodas de Prata do casal na Igreja de Nossa Senhora
da Candelária. Rio de Janeiro, outubro de 1941.
Fotografia gentilmente cedida pela família.
E foi na "sua" Igreja da Candelária que celebrou sempre as bodas da sua aliança com o seu grande amor, a mulher Glória. Primeiro as de prata e depois antecipadas 10 anos, as de ouro, pois a mulher que era muito mais nova do que o Seu Camello, temia a sua morte.

Seu Camello e sua mulher com os filhos, netos, genros, futura nora
e sogra da filha Luiza. Fotografia tirada na casa de Aluízio e Luíza Lins.
Gávea, Rio de Janeiro, 1951.
Mas quis a vida que o destino fosse o contrário... A 19 de março de 1962 morre Glória Vinhas Teixeira. Parecia que a vida ia terminar para Seu Camello, mas não! Sete dias depois da morte do seu grande amor, o amor que o havia curado e dado novo rumo, coloca um fato e gravata pretos, cor essa que nunca mais deixou e foi para detrás do balcão do Bico Doce atender os boémios clientes.

Os anos passaram, passaram, passaram... E nunca abandonou as suas três paixões. A Candelária, a família que o rodeava de imenso carinho e que ele tinha tanto orgulho e sua ligação nunca perdida com o velhinho Bar Bico Doce.

No dia 18 de outubro de 1971 a poucos dias de fazer 86 anos a luz da vida de Seu Camello apagou-se! Nas palavras da sua neta "foi-se embora como viveu, sem dar trabalho".

Aquele doce português, vindo da terras das camélias, que um dia cruzou o oceano rumo a uma vida melhor, deixou por terras brasileiras a sua alma, a alma de um português que adorava a vida, que adorava a alegria e que um dia, a sua ALMA BOÉMIA foi "curada" pelo amor da sua querida ALMA GÉMEA.

"Você sabe bem minha doce alma gêmea que quem tem a alma boêmia não consegue segurar..." 
Samba Alma Boêmia.




Músicas Alma Boêmia/Você é o Espinho e não a Flor/A Vitória demora mas vem
Arlindo Neto, Renato Milagrese Juninho Thybau, 2012.


Agradecimentos especiais:
A Maria da Conceição Lins que me despertou o interesse pela doce história e que tanto colaborou na pesquisa documental;
À neta de Seu Camello, Elisabeth Teixeira Lins, pela fabulosa recolha documental e oral e cedência de fotografias da família;
À restante família que colaborou de diversas formas: Mateus Pereira Lins, Antônio Carlos Dias Corrêa, Pericles Memória Filho, Tânia Teixeira Memória e Nelson Dias Corrêa Filho.

sábado, 1 de outubro de 2016

As Minas - O pedaço de volfrâmio que não foi parar à Alemanha Nazi...


Fecho os olhos e estranhamente vejo... Vejo as memórias a passarem como se fosse a fita de um filme!
Adolf Hitler inspeciona o comboio da Wehrmacht (Forças Armadas do Terceiro Reich). In Das Bundesarchiv.
Fecho os olhos e estranhamente vejo... Vejo o quarto do meu avô e uma estranha pedra que estava na gaveta da sua mesinha de cabeceira. Era preta e brilhante, de um negro intenso e profundo, misterioso... Ele guardava-a religiosamente, como se fosse um amuleto e o seu maior tesouro, como se fosse uma pepita de OURO, um ouro preto recordação de tempos difíceis e obscuros. Ele chamava-lhe o "minério"... Um pedaço de volfrâmio cujo negro espelhava a guerra e a dor... A MORTE!

Aquele volfrâmio tinha vindo de outro tempo, um tempo difícil, de extrema miséria e súbita riqueza, do tempo da Segunda Guerra Mundial. Veio das Minas de Adoria, em Cerva, Ribeira de Pena, escondido certamente, muito bem escondido, pois naquela época valia mais do que o ouro!
Cupão nº 31 (Volfrâmio) do concurso do Diário de Notícias
"As Riquezas de Portugal".  Desenho de Narciso Morais,
agosto de 1925.

Advinha: "Abunda cá pela terra, quasi, quasi à flor
do chão, o metal a quem a guerra deu sinistra aplicação.
Dois nomes lhe deram; chame-o por um ou por outro
quem queira, mas um que termine em amio é mais
a nossa maneira".

Vamos lá rebobinar a fita deste filme a preto e branco...

Há 77 anos atrás, a 1 de setembro de 1939, com a invasão da Polónia pela Alemanha, começava um dos conflitos mais sangrentos que se arrastou por 6 anos, no qual Portugal tentou manter a sua neutralidade, ou seja, passar entre os "pingos da chuva" ou das balas da Segunda Guerra Mundial. Por terras lusas o Estado Novo, regime assim chamado e liderado por António de Oliveira Salazar, mantinha o seu povo num estado de ignorância latente, "pobrezinhos mas honrados" a lutar para sair da miséria que mais parecia areia movediça. Nos meios rurais era mais visível esse estado, de um país parado no tempo, que vivia essencialmente da agricultura de subsistência, onde os ricos eram cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, sempre dependentes daquilo que a terra e o seu Senhor lhes dava.

E eis que surge o volfrâmio ou tungsténio! Na verdade já era explorado desde o séc. XIX, mas foi com as guerras que mais importância teve, pois era usado essencialmente na produção de munições e blindagens.

Postal ilustrado de Cerva, rua principal da vila.
Postal nº 1, Fotografia Alves, Chaves, Edição Rocha & Pereira,
Séc. XX, anos 20, meados.
Por Terras de Basto havia várias minas de volfrâmio nas serranias de Cerva, em Ribeira de Pena. Começaram a ser exploradas no início do séc. XX, mais propriamente a 28 de novembro de 1907, quando é concedida a propriedade das minas do Montado de Adoria à empresa belga Compagnie Minière du Tungstène. Entre 1909 e 1910 são concedidas as propriedades de várias minas nas freguesias de Limões e Cerva para exploração de volfrâmio, dividindo-se as concessões entre a empresa belga e outra empresa francesa chamada Société Civile d'Études de Tous Gisements Miniers. A 24 de setembro de 1913, as minas de Adoria, Montado de Adoria e Rio Mau passam a ser concessionadas pelo engenheiro de minas francês Gustave Thomaz .
Concessões das Minas de Cerva publicadas no Diário da República de 29 de agosto de 1912.

Mas avancemos novamente até ao início do conflito da Segunda Guerra Mundial...

Eram tempos difíceis, de fome e de racionamento! Cândido Alves, o meu avô materno passou por tudo isto... Pertencia a família numerosa e simples de pequenos proprietários e lavradores com ramificações nos lugares de Suidros e Carvalhais, em Atei, Mondim de Basto. Era filho de Carlos Alves e Virgínia da Silva e nasceu em Suidros no dia 25 de abril de 1925. E foi ligado à terra que cresceu!
O meu avô Cândido com 21 anos, na altura já casado, a cumprir o serviço militar no Regimento de Cavalaria em Chaves, 1946. Fotografia enviada para a minha avó com dedicatória atrás - "Daqui te mando para tu veres o verdadeiro soldado de cavalaria...".

Mas a agricultura pouco dava, principalmente para quem trabalhava nela, e o apelo do volfrâmio foi uma luz ao fundo do túnel! E lá foi ele para as minas, carregado de sonhos e esperanças, como milhares de pessoas naquela altura. Começava a guerra e a "febre do volfrâmio"!

Imagens das Minas da Panasqueira, onde era explorado
o volfrâmio pelos Aliados, através da empresa inglesa
Beralt Tin & Wolfram Limited. Covilhã, Séc. XX, anos 40.
Na imagem de cima, a entrada principal da mina e na de
baixo, mulheres na apanha do volfrâmio.
In LEAL, Padre Manuel Vaz, As Minas da Panasqueira
Vida e História, Ano de 1945. Retirado do blogue
beira-baixa-antigas-imagens.blogspot.pt
Em Cerva, no início dos anos 40, em plena Segunda Guerra Mundial, a maioria das minas estava concessionada à Empresa Mineira de Sabrosa, SA (Emisa), que havia comprado as várias concessões de um dos seus sócios, José Cândido Dias e do francês que já lá estava desde 1913, Gustave Thomaz.

Palacete da Rua Barão de Nova Sintra, nº 119, no Porto, sede da Emisa e
do "Grupo Alemão do Porto", em 1944. Fotografia de Teófilo Rego, 1958.
In Arquivo Municipal do Porto.
A Emisa era uma das empresas que fazia parte daquilo que os serviços secretos americanos chamavam o "Grupo Alemão do Porto". Na verdade era uma teia complexa de relações entre empresas nas quais estavam a Emisa e a Companhia Mineira do Norte de Portugal (CMNP), também conhecida como "Companhia Alemã". Ambas as companhias que se dedicavam à extração de volfrâmio e que detinham muitas das minas do norte do país eram controladas pelo seu maior acionista, uma empresa metalúrgica alemã chamada Gesellshaft Fuer Elektrometalurgie (GFE), Dr. Paul Gruenfeld, com ligações também à famosa empresa alemã, fabricante de armamento para o regime nazi, a Krupp!
"Krupp saúda o Führer".

As empresas portuguesas eram controladas e administradas pelo representante e diretor da GFE, o alemão e alto funcionário do regime nazi, Kurt Dithmer. E aqui começava o intrincado esquema de relações e lobbies para controlar o volfrâmio e enviá-lo para a Alemanha para alimentar a máquina de guerra do Terceiro Reich.
Documento sobre Kurt Ditmer e o "Grupo Alemão do Porto" do
Tribunal Internacional Militar de Nuremberga, Alemanha, produzido
pelos EUA e classificado com "secret".
In Cornell University Library, Law Library, Donavan Nuremberg
Trials Collection.

Segundo documentação americana, outrora secreta, da coleção do General William Donovan, o "pai" da CIA,  Herr Dithmer era a aranha que tecia a teia que ligava várias empresas compradas por outras pessoas que estavam ligados secretamente a ele ou ao regime nazi, onde imperava a corrupção e a troca de favores e influências junto dos mais altos dirigentes do Estado Novo, nomeadamente com o Conde de Lumbrales, ministro das finanças de Salazar. Por cá morava com a sua amante Lina de Sousa na Quinta do Monte, em Ermesinde, apesar de ter deixado a mulher Frau Minnie e o filho, na Alemanha. Teria vindo para Portugal entre 1940 e 1941, possivelmente segundo ordens do presidente da GFE, Dr. Heins Gehm.
Paul Pleiger a comprimentar Hermann Göering.
Pleiger era presidente da Reichwerk, AG, fuer Erzberbau von
Eisenhuetten "Hermann Göering".
In Suddeutsche Zeitug.

A GFE era outra empresa cuja história recente tinha muitas pontas soltas... O seu anterior dono era um judeu chamado Paul Gruenfeld, mas em 1938 com a "arianização" a empresa é vendida a Heins Gehm e a Paul Pleiger, que também controlavam outras empresas, o último ligado a Hermann Göering, um dos mais poderosos do Terceiro Reich, fundador da Gestapo e considerado o sucessor de Hitler.

O meu avô passaria muito tempo nas minas, só regressaria a casa nos fins-de-semana, de certeza, e não sei se alguma vez se cruzou com Kurt Dithmer em alguma visita que este tenha feito ao Couto Mineiro de Adoria. Talvez... Gosto de pensar que sim! Cruzou-se certamente e muitas vezes com o responsável alemão que estava em Adoria, Hans Hermann Krull e que seria a ponte com Kurt Dithmer.

A inocência e o desconhecimento de toda aquela complexa trama passava ao lado de toda a gente, gente simples que via no volfrâmio a sua tábua de salvação. Não interessava se trabalhavam para os alemães ou para os ingleses. Queriam lá saber! A necessidade e o vil metal eram tudo. Aliás alemães e aliados conviviam ordeiramente na exploração mineira. Em Cerva, como em muitas minas de volfrâmio portuguesas, paredes meias com as minas dos alemães estavam as de São João de Escoureda, concessionadas em 1943 à Companhia Portuguesa de Minas, controladas pelos britânicos. A estes não era a necessidade de volfrâmio que os movia, mas sim impedir que os alemães conseguissem mais!
Trabalhos da Comissão Reguladora do Comércio de Metais, 1944.
In Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian.

Era a loucura! O preço do volfrâmio subiu, subiu... O Estado Novo viu-se obrigado a tentar controlar os preços e as remessas de volfrâmio que saíam do país e criou a Comissão Reguladora do Comércio de Metais, por onde tudo passava. Foi seu vice-presidente e depois presidente, Fernando Manuel Alves Machado, neto do famoso Conde de Alves Machado, que curiosamente era natural de Cerva! Foi ele também o responsável pelas negociações com os aliados e com a Alemanha pelo controle de volfrâmio!
Armazém da Comissão Reguladora de Comércio de Metais
onde era guardado o volfrâmio, que depois era distribuído
segundo os acordos comerciais. 1944.
In Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian.

Fernando Manuel Alves Machado,
Comissão Reguladora do
Comércio de Metais,
vice-presidente de 1942 a 1944
 e presidente de 1945 a 1946.
In geneall.net.
Era rentável trabalhar no minério. Muita gente enriqueceu, pessoas que nada tinham e de repente ficaram ricas. Uma ilusão! Muitos nunca tinham visto tanto dinheiro e resolveram gastar, gastar, gastar até não poder mais. Relatos há de pessoas que na altura até faziam cigarros com notas!

Claro que toda esta "febre" favoreceu o contrabando e a exploração clandestina. Havia quem explorasse nas suas terras, havia quem roubasse, apesar da apertada segurança. Mas a ocasião faz o ladrão... Tudo valia!

O meu avô não se deslumbrou! Era poupadinho e amealhou tudo o que ganhou, estando longe de imaginar todo o circuito obscuro do volfrâmio e até a proveniência do dinheiro com que eram feitos os pagamentos! Sim, como é que a Alemanha pagava as toneladas de volfrâmio? E eram muitas! Portugal foi o país europeu que mais exportou o famigerado minério!

Alianças de ouro pilhadas aos judeus enviados
para os campos de extermínio com vista à "SOLUÇÃO FINAL".
No fim da guerra foram encontradas pelos americanos nas minas
de sal de Heilbronn, Alemanha. 1945. 
Com o tempo vão se levantando as pontas do véu... Mais uma vez havia esquemas e mais esquemas. Com o começo da guerra o marco alemão começou a ser rejeitado e o Terceiro Reich não teve outra alternativa senão encontrar outras formas de pagamento... Em ouro, jóias, porcelanas... Sim, obviamente fruto das pilhagens aos países invadidos e dos milhões de judeus espoliados e exterminados no HOLOCAUSTO! No caso judeu, eram objetos confiscados, como jóias, obras de arte, barras de ouro, moedas, DENTES de ouro...

O ouro, em grande parte roubado aos bancos dos países ocupados, era refundido, ou não, e colocado na Suiça, país neutro, tal como Portugal, e passado para outros países neutrais como forma de pagamento, através do Banco Nacional Suíço. Era a chamada "lavagem de dinheiro" ou melhor de ouro! O Banco de Portugal possuía lá a misteriosa "conta C", onde eram feitos os depósitos.
Milhares de sacos cheios de lingotes de ouro escondidos pelos nazis
nas minas de sal de Merkers, Alemanha. No final da guerra as minas
foram descobertas pelos americanos repletas de ouro e obras de arte. 1945

Segundo documentos encontrados na estação fronteiriça espanhola de Canfranc, na época controlada pelos alemães através das SS e da Gestapo que estavam do lado francês, de Portugal vinham vários produtos como azeite, café, vinho, conservas e azeitonas, e claro, em enormes quantidades, o volfrâmio, tudo em direção à Alemanha. E de lá, via ferroviária vinham barras de ouro, muitas toneladas, que eram descarregadas e transportadas por Espanha em camiões até Portugal. Era o chamado "OURO NAZI"!

O Presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar e o
Presidente da República, Óscar Carmona, Séc. XX, anos 40.
In Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian.
Era o ouro que encheu as reservas de Portugal, o ouro que Salazar guardou religiosamente e fez dele uma das maiores reservas de ouro do mundo. Em 1939, no início da guerra, Portugal tinha cerca de 65 toneladas em reserva e em 1945, no final da guerra, tinha a mais cerca de 310 toneladas! Por Canfrac, após julho de 1940, altura em que a França foi ocupada pelos nazis e permitida a circulação terrestre até à Alemanha, passaram pelos menos 228 toneladas de ouro rumo a Portugal.

Bem, aos mineiros o ouro nunca chegou, chegavam os escudos, as notas que os mais excêntricos transformavam em mortalhas de cigarros. É o chamado "queimar" dinheiro, literalmente.

A 5 de junho de 1944 Portugal suspende a exploração
de volfrâmio por pressões britânicas e americanas.
In Diário de Lisboa, 7 de junho de 1944,
Fundação Mário Soares.
E tudo tem um fim... Um dia Salazar proibiu temporariamente a exploração de volfrâmio! Estava a ser lucrativo, mas... Os ingleses e os americanos pressionaram, pressionaram, tudo para acabar aquele jogo de vender aos alemães o volfrâmio para a sua máquina de guerra. O aviso foi feito sugerindo que o seu incumprimento poderia levar ao fim do Estado de Novo e à deposição de Salazar. O regime cedeu e obedeceu!

Mas a guerra estava quase no fim! E com ela acabou a "febre", desvalorizou o volfrâmio, acabaram muitas fortunas. 

O meu avô voltou para Atei e casou. Consigo vieram os problemas respiratórios, possivelmente ligados à "doença das minas", que nunca mais o deixaram. Com o dinheiro do volfrâmio ergueu a sua vida e, mais tarde, comprou parte de uma propriedade de família que havia pertencido aos seus trisavós António da Silva Borges e Maria Joaquina da Cunha Forte e que o tempo havia desmembrado por vários herdeiros. Quis o destino que essa propriedade fosse minha...

Ruínas do complexo das Minas de Adoria, em Cerva. Atualmente quase todos
os edifícios estão arruinados e alguns em risco de desaparecerem completamente.
As Minas de Adoria continuaram, mas não com o fulgor da Segunda Guerra que havia trazido o sonho do "ouro negro". Chegaram a trabalhar lá cerca de 5000 pessoas em condições miseráveis e extremamente difíceis. Todo o trabalho era manual, não havia luz elétrica. Só em 1956 é que ela chegou!

Em 1972 acabou a extração! Veio o abandono, o saque de materiais, o saque do ferro. Muitos carris foram vendidos e alguns até reciclados para fazer ramadas de vinha... Na propriedade que o meu avô comprou ainda existem alguns...

São estas as memórias das minas e da obscuridade por detrás delas, que o tempo vai desvanecendo e apagando deste filme a preto e branco.

Aquele pedaço de volfrâmio, aquele que o meu avô trouxe das minas e que eu gosto de pensar que não acabou numa longa viagem até à Alemanha, numa blindagem de um tanque de guerra nazi, DESAPARECEU! Estranhamente desapareceu quando o meu avô morreu! Como se morressem também as memórias daquele tempo... Indiretamente ficaram as terras compradas com o volfrâmio maldito e os carris que suportam as ramadas de vinha... E ficou na minha cabeça a imagem daquela pedra preta no cantinho da gaveta da mesa de cabeceira. Lembro-me tão bem do seu peso! Estranhamente pesada, apesar do seu pequeno tamanho, como se lá estivesse guardada toda a culpa do Homem, toda a dor e terror infligidos, toda a morte causada pelo louco Führer... E todo o peso do esforço dos MINEIROS e do duro TRABALHO para ganhar a LIBERDADE de uma vida melhor...

"ARBEIT MACHT FREI" 
"O trabalho liberta", famosa frase escrita no portão do campo de concentração de Auschwitz.
Adolf Hitler, numa das suas características poses de discurso. Cerca de 1927.
Fotografia de Heinrich Hoffmann, in Das Budesarchiv.

Agradecimento especial
A Virginie Vila Verde do projeto Trajar do Povo em Portugal pela sua ajuda preciosa na pesquisa de raras imagens de época sobre minas de volfrâmio.