Os Mortos de Sobrecasaca

"Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis, alto de muitos metros e velho de infinitos minutos, em que todos se debruçavam na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca. Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos. Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava, que rebentava daquelas páginas."

Carlos Drummond de Andrade, Os Mortos de Sobrecasaca (Sentimento do mundo, 1940)

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Aqui quem manda são os BARÕES!

E EIS QUE ELE CHEGOU!

Ele?... O BARÃO, um mito vindo do passado...

Ou serão vários barões vindos do passado? Confuso? Também eu... Mas só até perceber a verdadeira história de Júlio José Fernandes Basto, o BARÃO DE BASTO!

Júlio José Fernandes Basto, Barão de Basto
Porto, Séc. XX, anos 20.
(fotografia gentilmente cedida pela família)
Precisamos recuar muito no tempo para perceber a verdadeira razão ou confusão que tem permanecido na terra onde o barão nasceu, Cabeceiras de Basto!

Contemporâneo do meu trisavô Joaquim José, o "Manco", que o conheceu certamente e que possivelmente até poderá ter privado com ele, o barão está envolto num bruma misteriosa, com muitas estórias à mistura e pitadas de excentricidade, um verdadeiro mito! Mas será mesmo verdade?

Vamos recuar até 20 de janeiro de 1798 e 25 de julho de 1799, altura em que nasceram dois irmãos, Alexandre José e João António Fernandes, respetivamente pai e tio do barão, no pequeno lugar de Leiradas, em Cabeceiras de Basto. Era uma família relativamente humilde. Os pais, Manuel José Fernandes e Joanna Maria Leite eram pequenos proprietários daquele lugar, com uma vida modesta que não preenchia os sonhos de fortuna daqueles dois irmãos. E foi então, pela mão de algum padrinho ou familiar que partiram para o Brasil.

Regressaram com uma fortuna colossal! Sobre a sua origem pouco se sabe, apenas especulação... Possivelmente herdaram-na de algum familiar que lhes deu a mão no então Brasil colonial!

Portugal daquele tempo era um país devastado, primeiro pelas invasões das tropas de Napoleão Bonaparte e depois e pela guerra civil que opôs dois irmãos na luta pelo poder, D. Miguel e D. Pedro... É neste contexto, já com o Regime Liberal instalado que o ministro Joaquim António de Aguiar, conhecido como o "Mata-Frades" assina o decreto de extinção das ordens religiosas e nacionalização de todos os seus bens, a 28 de maio de 1834. Os ricos irmãos Fernandes, já com o "Basto", nome da sua terra, acrescentado ao apelido, viram na venda dos bens dos frades beneditinos do Mosteiro de São Miguel de Refojos, em Cabeceiras de Basto, a oportunidade para aplicarem parte da sua fortuna vinda do outro lado do Atlântico. E é assim que em 1839 compram, em hasta pública, todas as propriedades beneditinas da terra que cresceu à volta daquele mosteiro de origem medieval, ainda anterior à fundação de Portugal.

Mosteiro de São Miguel de Refojos de Basto - Casa do Mosteiro
Do lado esquerdo, na ala convertida na Casa dos irmãos Fernandes Basto
ainda é visível o já desaparecido original revestimento de azulejos
azuis e brancos dispostos em riscas verticais,
à semelhança com a Casa do Barão, do outro lado da praça.
Postal ilustrado de José F. Barroso
E aquele edifício monástico passou assim a ser a residência daqueles dois irmãos, símbolos de uma classe burguesa em ascensão!

Os irmãos Fernandes Basto passaram a ser, talvez a família mais poderosa em Cabeceiras de Basto e porventura uma das influentes de toda a região de Basto. Assim se explica que tenha nascido aqui o mito de uma família poderosa, num contexto de uma terra rural, pobre e isolada, como era Cabeceiras na altura, e os Fernandes Basto vistos como aqueles que eram tão ricos, que tudo podiam e se davam ao luxo de tudo terem!

Gravura do Mosteiro de São Miguel de Refojos de Basto -
 Vista da praça fronteira, mostrando bem o caráter rural
e pitoresco da vila de Cabeceiras de Basto.
In: Revista "O Ocidente" nº 75 de 21 de Janeiro de 1881
Alexandre José Fernandes Basto casa em 1835 com Constança Álvares Pereira de Sousa, de quem tem uma vasta prole de 10 filhos, um deles Júlio, o futuro barão. No mosteiro já não se ouviam as orações dos frades beneditinos, mas sim o barulho de crianças, muitas crianças, uma grande família de 5 irmãs, Maria Carolina, Emília, Leonor, Justina Amélia e Gertrudes e 5 irmãos, Bernardino, Cândido, Alexandre, Lino e Júlio. Todos eles cresceram no seio de uma poderosa família e alguns casaram com membros de famílias de grandes Casas da região. Permanece na memória familiar alguns episódios caricatos do cortejamento das filhas do poderoso Alexandre José, nomeadamente o pretendente de Justina Amélia, que se insinuava, ostentando um rico traje com relógio de bolso à altura, apesar de na verdade não ser assim tão valioso, sob as sacadas do mosteiro, onde Justina e as irmãs espreitavam aquele ousado "dandy"!

Vista da Casa do Barão, do lado esquerdo, com o mosteiro ao fundo.
Postal do início no séc. XX
João António  não casou nem teve descendência, vindo a morrer a 24 de agosto de 1873 e quase um ano depois a 2 de agosto de 1874 morre o irmão Alexandre José, então Comendador da Ordem da Conceição. Viria a herdar a Casa do Mosteiro o homónimo filho Alexandre Augusto e Júlio José o edifício do antigo Tribunal do Couto de Refojos de Basto, que o transformou num original palacete muito ao gosto da "Casa de Brasileiro", que ficou conhecido como a "Casa do Barão".

Júlio José, nascido em Cabeceiras de Basto, em 1850, foi talvez o mais empreendedor dos irmãos, não perdendo a sua ligação ao Brasil. Os seus negócios além-mar fizeram que a sua herança crescesse, crescesse, crescesse... Cada vez mais! Outra fortuna colossal!

A Casa do Barão
Fonte: SIPA, www.monumentos.pt
Júlio José casa com Amélia Eunice Gonçalves Ferreira, irmã da mulher do seu irmão Alexandre Augusto, de quem tem 9 filhos, Frederico, Beatriz, José, Constança, Júlio, António, Jaime, outro Jaime que morreu com 1 ano de idade, e Fernando.

A sua vasta fortuna e generosos donativos valeram-lhe o titulo tão ambicionado para ter apenas aquilo que ainda não tinha, um lugar na aristocracia! E é assim que nasce este BARÃO, titulo dado pelo rei D. Luís I a 8 de agosto de 1889 (Registo Geral de Mercês de D. Luís I, liv. 56, f. 62v - Arquivo Nacional da Torre do Tombo).

Cenas de uma caçada - Júlio José Fernandes Basto, Barão de Basto empunhando a espingarda.
Séc. XIX, final.
Fotografia gentilmente cedida pelo Dr. José Queirós

Pormenor da varanda da Casa do Barão, muito ao gosto da
"Casa de Brasileiro", com inspiração na arquitetura
brasileira oitocentista.
Fonte: SIPA, www.monumentos.pt
(Fotografia da autoria de Joaquim Castro Gonçalves)
E é assim que nasce também a confusão dos barões... Apesar do título ter sido único e não ter passado às gerações vindouras, o que é certo é que para as pessoas da terra, com voraz apetite por alcunhas, a toda aquela poderosa família, para além do diminutivo "inho" colocado no nome de cada um, era acrescentado o titulo de barão ou baronesa! E multiplicaram-se assim os barões...

Festas, muitas festas, faustosas festas... A moda dos saraus... Tudo isto se passava entre o palacete do barão e o mosteiro do seu irmão! Despiques à parte, tudo isto devia ser muito estranho e até excêntrico para o povo de Cabeceiras de Basto habituado à modéstia e austeridade da vida rural!

Pormenor das telhas pintadas do beiral, muito ao gosto das
"Casas de Brasileiro", na ala esquerda do Mosteiro de
São Miguel de Refojos. Terão sido colocadas,
muito provavelmente, com as obras de remodelação
da fachada, no último quartel do séc. XIX.
Fonte: SIPA, www.monumentos.pt
(Fotografia da autoria de Joaquim Castro Gonçalves)
Mas para minha desilusão, apesar do luxo e do fausto, nada de estranho ou caricato se conta de Júlio José Fernandes Basto. Consta apenas que seria um cioso capitalista que nunca perdeu dinheiro, pelo contrário multiplicava-se nas suas mãos... Como se de Midas se tratasse!

O único e verdadeiro Barão de Basto morreu em 1929. Mas, o mito não! Continuou.. E como o dinheiro era muito, esta suposta "excentricidade" passou para as gerações seguintes.

Muitas histórias ainda se contam, com muito "açúcar" e algum "picante" sobre familiares do barão, os outros "barões"!

Um dos que contribuiu para o mito foi o sobrinho do barão, Nuno Fernandes Basto, também ele popularmente chamado de "barão". Era filho de Alexandre Augusto, e casado com Constança, sua prima direita, filha do barão e adivinhe-se, chamada popularmente de "baronesa". Nuno "Barão" consta que era deveras estranho, pelo menos para meio pequeno de Cabeceiras! Era notívago, dormia de dia e saía unicamente à noite, como se um vampiro se tratasse, pelo menos era o que contava o meu avô, feitor de sua casa, a Casa do Mosteiro.

Outro que também contribuiu, e muito, para alimentar o mito, foi um filho do barão... O António Fernandes Basto, conhecido popularmente, como também não podia deixar de ser, por "barão"! Figura caricata que desde a sua juventude pautava pela irreverência... Histórias há sobre a sua divertida vida de estudante universitário em Coimbra! Uma delas sobre um barril de vinho que o barão mandou para o seu filho... Rastilho para que se juntasse em Coimbra uns poucos de estudantes num "brainstorming", em vez de irem aos exames, a fim de engendrarem um mecanismo para conduzir o vinho do barão através de uma mangueira a cada uma das suas camas... Ou até a história do noivado de António com Maria da Conceição Novais de Ferreira de Melo, da Casa de Bouças, desfeito pelo pai da noiva, em pleno jantar de noivado, quando António resolveu "aliviar a bexiga" no salão do futuro sogro! Consta que sempre foi apaixonado por Maria da Conceição, mas só casou com ela muito mais tarde, quando o sogro morreu e com ele a proibição daquela união tão "imprópria"!

Capa do livro "O Barão" de Branquinho da Fonseca
sob o pseudónimo António Madeira, 1942.
António "Barão" chegou até a ser a inspiração para a personagem principal da famosa novela "O Barão" do escritor Branquinho da Fonseca. Esta obra-prima escrita em 1942, sob o pseudónimo de António Madeira, que trata do conflito entre dois tempos e duas maneiras de ver o mundo, terá tido origem nas visitas feitas pelo escritor a Cabeceiras de Basto, onde tinha amigos e onde terá também conhecido este "barão" que o  convidou para as suas grandes jantaradas regadas com muito vinho e fantasia!

O "barão" de Branquinho da Fonseca é uma personagem intrigante, um verdadeiro ditador que tudo pode, aterroriza e... Manda!

Esta obra terá também inspirado em 1943, Valerie Lewton, uma produtora americana, casada com um ator português, que vê no "O Barão" potencial para realizar um filme de terror, construindo a personagem à semelhança do famoso Conde Drácula. O filme começou a ser rodado em segredo, numa fábrica do Barreiro. A PIDE terá descoberto, e vendo na caricatura do barão algumas semelhanças com um certo ditador, mandou destruir o filme, repatriar a equipa americana e prender os atores portugueses no Tarrafal, onde vieram a morrer torturados!

Mas, a história não morre aqui e eis que em 2005 são descobertas duas bobines do filme original! Estas preciosidades vão parar às mãos do realizador Edgar Pêra, que se lança na aventura de fazer um remake desta curiosa obra. E eis que o BARÃO renasce!

Tudo isto, e mais alguma coisa, terá contribuído para um mito, uma lenda, uma história em que entram várias personagens, em que todas têm em comum o poder, a riqueza e a influência, terem vivido numa sociedade fechada e rural, que via na diferença a excentricidade e independentemente do significado de um titulo nobiliárquico, BARÃO era aquele que MANDAVA!


O filme "O Barão", de 2011, inspirado na obra homónima de Branquinho da Fonseca, do realizador Edgar Pêra, com os atores Nuno Melo, Marcos Barbosa e Leonor Keil.
  Trailler do filme (Rotterdam Film Festival Trailler) 
Fonte: www.youtube.com, Edgar Pêra

Excerto do filme 
Fonte: www.youtube.com, Edgar Pêra

Agradecimentos especiais:
Ao realizador Edgar Pêra pela autorização do uso do trailler do filme "O Barão" associado ao blogue O Castro "Manco";
A Augusto João Teixeira, da Casa do Tempo - Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto; 
Ao professor Tomás;
Ao engenheiro Basto, bisneto do Barão de Basto;
Ao Dr. José Queirós.