Os Mortos de Sobrecasaca

"Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis, alto de muitos metros e velho de infinitos minutos, em que todos se debruçavam na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca. Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos. Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava, que rebentava daquelas páginas."

Carlos Drummond de Andrade, Os Mortos de Sobrecasaca (Sentimento do mundo, 1940)

sábado, 5 de novembro de 2016

Alma boémia - Uma viagem de Celorico de Basto ao Rio de Janeiro

Eça de Queirós uma vez terá dito que o português do Brasil era um português com açúcar, falado de uma forma doce e alegre, com "ginga"! Mas serão os portugueses pessoas carrancudas, que não gostam de alegria e diversão?

Festa de Carnaval na casa de José Camello Teixeira, no dia de aniversário da sua mulher Glória.
Ao centro, de pé, José Camello Teixeira com um chapéu árabe "tarbouch".
Ipanema, Rio de Janeiro, 1935.
Fotografia gentilmente cedida pela família.
Não, claro que não! E a prova está aqui nesta história, a história de um "doce" português das Terras de Basto que cedo emigrou para o "doce" Brasil e consigo levou a sua "alma boémia".

Vamos recuar no tempo, por terras de norte de Portugal, em Celorico de Basto... Vamos até ao dia 24 de outubro de 1885, dia em que foi batizado José Camello Teixeira, nascido na Freguesia de Borba da Montanha, filho de João Teixeira Camello e Ermelinda Pires. Pertencia a uma família numerosa, de nove filhos, cinco rapazes e quatro raparigas, do lugar de Quintela. O desejo de seu pai, tal como o de muitos pais da época do pobre e rural Minho era que os filhos, mal fossem adolescentes, emigrassem para amealhar fortuna. Uma riqueza conquistada com suor e lágrimas de saudade no grande e promissor país irmão, o Brasil.

No dia 12 de janeiro de 1899, José Camello, de apenas 13 anos com o rosto marcado de borbulhas trazidas pela tenra idade, e o seu irmão Domingos, de 15 anos, pedem passaporte para irem para o Rio de Janeiro. O outro irmão, Manuel irá ter com eles mais tarde. A mãe Ermelinda ficou tão desgostosa com a partida dos filhos... Dizia que morreria, jamais iria aguentar a separação! Segundo a tradição oral familiar morreria pouco tempo depois com um ataque cardíaco em plena feira de Celorico de Basto. 

Registo de Passaporte de José Camello Teixeira e irmão Domingos, 12 de janeiro de 1899.
In Arquivo Distrital de Braga, Registo de Passaportes, 1 de fevereiro de 1896 a 6 de fevereiro de 1899.
Entrée de Rio: De Nova Cintra, c. 1890.
Baía de Guanabara, Rio de Janeiro, Brasil.
Fotografia de Marc Ferrez, acervo Fundação Biblioteca Nacional.
In brasilianafotografica.bn.br

No dia 12 de janeiro o navio que os levava entra na Baía de Guanabara e ao fundo a deslumbrante cidade maravilhosa do Rio de Janeiro! Com eles chegaram mais dois amigos feitos pela ocasião, José Dias Corrêa e Manuel de Carvalho. Ficariam amigos para sempre do "Seu Camello".


Vista geral do centro do Rio, destacando-se a Igreja da Candelária,
cuja construção iniciou-se em 1775.
Fotografia de Marc Ferrez, 1886, Rio de Janeiro, Brasil.
In literaturaeriodejaneiro.blogsopt.pt
Ao desembarcarem no reboliço da agitada cidade tropical trataram rapidamente de procurar trabalho. O destino quis que o Seu Camello encontrasse trabalho num bar de um alemão, na rua General Câmara, nº 246, em pleno centro, perto da famosa Igreja da Candelária.

Rua General Câmara, onde se situava originalmente
o Bar Bico Doce. 1920, Rio de Janeiro, Brasil.
Como a maioria dos emigrantes começou por baixo, mas como pessoa trabalhadora e séria que era rapidamente conquistou a admiração do patrão. A ânsia de poupar era tanta, provavelmente para não desapontar o pobre pai cheio de esperanças de ver o filho triunfar na vida, que pedia ao patrão para guardar todo o salário ganho, apenas ficava com as gorjetas para os gastos necessários. Gastos... Seriam poucos certamente, pois dormia também no bar, talvez alguns gastos com a sua boémia "incontrolável"!

Um dia o seu patrão morreu e a viúva como não tinha dinheiro para lhe dar os salários guardados propôs a venda do bar, e assim foi... A 4 de fevereiro de 1909 nasce o famoso bar carioca "Bico Doce - Refrescos e bebidas finas, chopps e sandwiches - J. Camello Teixeira". 

O negócio foi correndo de vento em popa! No seu bar, frequentado também pela elite carioca, eram presenças assíduas o famoso intelectual, deputado, senador e ministro Ruy Barbosa e o Barão de Rio Branco.

E o Seu Camello foi cada vez mais mergulhando na boémia carioca. Festas, noitadas, muita farra, bebida, mulheres... Adorava divertir-se, e claro o culminar da diversão era o Carnaval carioca, com o ritmado samba. Metia-se em tudo, bastava ouvir o som do pandeiro e do cavaquinho e lá estava ele, no samba. Não foi por acaso que foi diretor de duas agremiações carnavalescas.

Mas, um dia a alegria da vida noturna foi ofuscada pela luz do dia. Conheceu o amor da sua vida!

José Camello Teixeira e Glória Siqueira da Vinha no dia do seu casamento civil. Rio de Janeiro, 1916.
Fotografia gentilmente cedida pela família.
Chamava-se Glória Siqueira da Vinha, brasileira, filha natural do negociante português José Ribeiro da Vinha e de Prudenciana Siqueira. O seu amor encontrou-o na casa do seu amigo de viagem, o Corrêa. A jovem Glória, já orfã de pai, de apenas 14 anos estava lá hospedada, depois de ter saído de casa por desavenças com a sua mãe Prudenciana por não concordar com o seu terceiro casamento. Achava ela que este homem só lhe traria a desgraça e a dilapidação da fortuna deixada pelos dois maridos anteriores. E o futuro daria-lhe toda a razão!
3º casamento da mãe de Glória, D. Prudenciana Siqueira, com António Alves
Correia. Foram padrinhos José Camello Teixeira e sua mulher. Na foto estão
também presentes os parentes, os amigos Corrêa e Carvalho com as mulheres.
Rio de Janeiro, 1917.
Fotografia gentilmente cedida pela família.

Seu Camello foi conquistado pelo estômago, provou na casa do amigo uma deliciosa aletria feita pela Glória e ficou rendido pelo doce e pela jovem. Já diria o povo, "adoçou-lhe a bico" e o "bico doce" já ele tinha!

A diferença de idades entre ambos ainda era grande, mas mesmo com os curtos 14 anos de Glória e os maduros 31 anos de Seu Camello, casaram no dia 7 de outubro de 1916.

Seu Camello estava doente... A vida desregrada da sua alma boémia tinha-lhe trazido muitos problemas de saúde, mas o amor curou-o literalmente! A "comidinha" e os cuidados da sua mulher, agora chamada de Glória Vinhas Teixeira, devolveram-lhe novamente a saúde, quase milagrosamente o figado afetado pelo excessos da noite regenerou, com uma ajudinha também de temporadas na Estação de Águas de São Lourenço, em Minas Gerais. Realmente o AMOR verdadeiro tudo cura!

E pouco tempo depois vieram os frutos desse grande amor, em 1918 a filha Ermelinda e em 1920 a filha Luíza.

A boémia de Seu Camello ficou-se pela sua alma e pelos seus prósperos negócios dos bares do Bico Doce e do Fluminense Football Club. Tornou-se um verdadeiro homem de família, apesar de continuar com um pé no samba!
A família toda junta, com José Camello Teixeira,
Glória Vinhas Teixeira e as filhas Elza, Ermelinda e Luíza.
Porto, 1922.

Ermelinda, Elza e Luiza.
Porto, 1922.
Fotografia gentilmente
 cedida pela família.
Mas depois de tantos anos longe da sua terra natal, chega uma carta do seu pai para o irmão Domingos para que este voltasse a Celorico para tratar de problemas da herança. O irmão de costas voltadas para o pai, pois sempre o culpou da morte da mãe, recusou-se a ir. Seu Camello arranjou uma solução... O irmão Domingos ficou à frente dos seus negócios e ele e a família foram para Portugal passar uma temporada e resolver a questão da herança com uma procuração passada por Domingos. E lá foram eles num vapor de luxo, com bábá para as crianças, em setembro de 1921. A chegada não podia ser mais esplendorosa para os olhos do seu pai que tanto ambicionava com a chegada do "brasileiro torna-viagem" que havia triunfado na vida.

No Porto, em 1922, nasce mais uma filha, a Elza, que ficou conhecida como "a portuguesa". Ela e a Luíza são batizadas em Cabeceiras de Basto.

Mas a estadia em Portugal acaba quando Domingos envia uma carta a dizer que os negócios precisam urgentemente que o irmão regresse! E assim foi... Mas levam mais uma pessoa, uma "pessoinha", Glória vai grávida da filha Lourdes.

Inauguração da nova casa em Ipanema, na Rua Prudente de Morais nº 202,
atual 504. Em baixo o casal e em cima, na varanda os filhos.
 Rio de Janeiro, 1932. Fotografia gentilmente cedida pela família.
Toda a família Camello Teixeira na
cascatinha da Floresta da Tijuca.
Rio de Janeiro, 1935.
Fotografia gentilmente cedida pela família.
A situação financeira novamente estabiliza e cresce com a astúcia e "olho para o negócio" de Seu Camello. Em 1927 nasce mais um filho, o tão esperado filho varão, a quem deram o nome de João. E com a família tão grande, resolve então construir a sua casa de família no famoso bairro de Ipanema. Em 1932 toda a família muda-se para a nova casa, uma bonita vivenda que espelhava todo o esforço do emigrante que tinha vindo de Celorico de Basto com o sonho de fortuna.

Mas de repente a sombra do destruidor progresso abateu-se sobre o Bico Doce... Em plena Segunda Guerra Mundial, frequentado por alemães e ingleses, que o Seu Camello mantinha em clima de paz, chegou a notícia que o bar iria ser demolido! Aliás iriam ser derrubados bairros inteiros em pleno centro histórico do Rio para dar lugar à obra faraónica da Avenida Presidente Vargas, sonho de Getúlio Vargas para a sua capital. Até a famosa Praça Onze onde na altura eram feitos os desfiles das escolas de samba e centro da boémia carioca foi quase destruída e drasticamente reduzida.

Avenida Presidente Vargas inaugurada a 7 de setembro de 1944.
In historiadorio.wordpress.com
Paciência... Veio tudo abaixo! Mas o Bico Doce renasceu como uma Fénix noutro local da cidade, no Beco das Cancelas, entre as ruas do Rosário e de Buenos Aires. Local bem mais pequeno, mas que manteve o espírito boémio que tanto o caracterizava e o mais importante de tudo, o Seu Camello atrás do balcão, com a sua "paciência de Jó", aconselhando prudência no consumo alcoólico. Até parecia que não queria fazer negócio! Claro que não, mas como a sua experiência já era "velha como o diabo" preocupava-se com todos. Chegava até a levar a casa aqueles que adormeciam inebriados com cerveja e cachaça.
Comenda atribuída a José Camello Teixeira
da Irmandade do Santíssimo Sacramento
da Candelária.
Fotografia gentilmente cedida pela família.

Mas Seu Camello não era homem de poucas paixões, além da família e do Bico Doce, havia uma terceira, a religiosa, a de Nossa Senhora da Candelária. Pertencia à Irmandade do Santíssimo Sacramento da Igreja da Candelária, que o agraciou Comendador e Irmão Benemérito em 1954. Foi uma vida dedicada durante 67 anos como diretor do culto.

Celebração das Bodas de Prata do casal na Igreja de Nossa Senhora
da Candelária. Rio de Janeiro, outubro de 1941.
Fotografia gentilmente cedida pela família.
E foi na "sua" Igreja da Candelária que celebrou sempre as bodas da sua aliança com o seu grande amor, a mulher Glória. Primeiro as de prata e depois antecipadas 10 anos, as de ouro, pois a mulher que era muito mais nova do que o Seu Camello, temia a sua morte.

Seu Camello e sua mulher com os filhos, netos, genros, futura nora
e sogra da filha Luiza. Fotografia tirada na casa de Aluízio e Luíza Lins.
Gávea, Rio de Janeiro, 1951.
Mas quis a vida que o destino fosse o contrário... A 19 de março de 1962 morre Glória Vinhas Teixeira. Parecia que a vida ia terminar para Seu Camello, mas não! Sete dias depois da morte do seu grande amor, o amor que o havia curado e dado novo rumo, coloca um fato e gravata pretos, cor essa que nunca mais deixou e foi para detrás do balcão do Bico Doce atender os boémios clientes.

Os anos passaram, passaram, passaram... E nunca abandonou as suas três paixões. A Candelária, a família que o rodeava de imenso carinho e que ele tinha tanto orgulho e sua ligação nunca perdida com o velhinho Bar Bico Doce.

No dia 18 de outubro de 1971 a poucos dias de fazer 86 anos a luz da vida de Seu Camello apagou-se! Nas palavras da sua neta "foi-se embora como viveu, sem dar trabalho".

Aquele doce português, vindo da terras das camélias, que um dia cruzou o oceano rumo a uma vida melhor, deixou por terras brasileiras a sua alma, a alma de um português que adorava a vida, que adorava a alegria e que um dia, a sua ALMA BOÉMIA foi "curada" pelo amor da sua querida ALMA GÉMEA.

"Você sabe bem minha doce alma gêmea que quem tem a alma boêmia não consegue segurar..." 
Samba Alma Boêmia.




Músicas Alma Boêmia/Você é o Espinho e não a Flor/A Vitória demora mas vem
Arlindo Neto, Renato Milagrese Juninho Thybau, 2012.


Agradecimentos especiais:
A Maria da Conceição Lins que me despertou o interesse pela doce história e que tanto colaborou na pesquisa documental;
À neta de Seu Camello, Elisabeth Teixeira Lins, pela fabulosa recolha documental e oral e cedência de fotografias da família;
À restante família que colaborou de diversas formas: Mateus Pereira Lins, Antônio Carlos Dias Corrêa, Pericles Memória Filho, Tânia Teixeira Memória e Nelson Dias Corrêa Filho.

sábado, 1 de outubro de 2016

As Minas - O pedaço de volfrâmio que não foi parar à Alemanha Nazi...


Fecho os olhos e estranhamente vejo... Vejo as memórias a passarem como se fosse a fita de um filme!
Adolf Hitler inspeciona o comboio da Wehrmacht (Forças Armadas do Terceiro Reich). In Das Bundesarchiv.
Fecho os olhos e estranhamente vejo... Vejo o quarto do meu avô e uma estranha pedra que estava na gaveta da sua mesinha de cabeceira. Era preta e brilhante, de um negro intenso e profundo, misterioso... Ele guardava-a religiosamente, como se fosse um amuleto e o seu maior tesouro, como se fosse uma pepita de OURO, um ouro preto recordação de tempos difíceis e obscuros. Ele chamava-lhe o "minério"... Um pedaço de volfrâmio cujo negro espelhava a guerra e a dor... A MORTE!

Aquele volfrâmio tinha vindo de outro tempo, um tempo difícil, de extrema miséria e súbita riqueza, do tempo da Segunda Guerra Mundial. Veio das Minas de Adoria, em Cerva, Ribeira de Pena, escondido certamente, muito bem escondido, pois naquela época valia mais do que o ouro!
Cupão nº 31 (Volfrâmio) do concurso do Diário de Notícias
"As Riquezas de Portugal".  Desenho de Narciso Morais,
agosto de 1925.

Advinha: "Abunda cá pela terra, quasi, quasi à flor
do chão, o metal a quem a guerra deu sinistra aplicação.
Dois nomes lhe deram; chame-o por um ou por outro
quem queira, mas um que termine em amio é mais
a nossa maneira".

Vamos lá rebobinar a fita deste filme a preto e branco...

Há 77 anos atrás, a 1 de setembro de 1939, com a invasão da Polónia pela Alemanha, começava um dos conflitos mais sangrentos que se arrastou por 6 anos, no qual Portugal tentou manter a sua neutralidade, ou seja, passar entre os "pingos da chuva" ou das balas da Segunda Guerra Mundial. Por terras lusas o Estado Novo, regime assim chamado e liderado por António de Oliveira Salazar, mantinha o seu povo num estado de ignorância latente, "pobrezinhos mas honrados" a lutar para sair da miséria que mais parecia areia movediça. Nos meios rurais era mais visível esse estado, de um país parado no tempo, que vivia essencialmente da agricultura de subsistência, onde os ricos eram cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, sempre dependentes daquilo que a terra e o seu Senhor lhes dava.

E eis que surge o volfrâmio ou tungsténio! Na verdade já era explorado desde o séc. XIX, mas foi com as guerras que mais importância teve, pois era usado essencialmente na produção de munições e blindagens.

Postal ilustrado de Cerva, rua principal da vila.
Postal nº 1, Fotografia Alves, Chaves, Edição Rocha & Pereira,
Séc. XX, anos 20, meados.
Por Terras de Basto havia várias minas de volfrâmio nas serranias de Cerva, em Ribeira de Pena. Começaram a ser exploradas no início do séc. XX, mais propriamente a 28 de novembro de 1907, quando é concedida a propriedade das minas do Montado de Adoria à empresa belga Compagnie Minière du Tungstène. Entre 1909 e 1910 são concedidas as propriedades de várias minas nas freguesias de Limões e Cerva para exploração de volfrâmio, dividindo-se as concessões entre a empresa belga e outra empresa francesa chamada Société Civile d'Études de Tous Gisements Miniers. A 24 de setembro de 1913, as minas de Adoria, Montado de Adoria e Rio Mau passam a ser concessionadas pelo engenheiro de minas francês Gustave Thomaz .
Concessões das Minas de Cerva publicadas no Diário da República de 29 de agosto de 1912.

Mas avancemos novamente até ao início do conflito da Segunda Guerra Mundial...

Eram tempos difíceis, de fome e de racionamento! Cândido Alves, o meu avô materno passou por tudo isto... Pertencia a família numerosa e simples de pequenos proprietários e lavradores com ramificações nos lugares de Suidros e Carvalhais, em Atei, Mondim de Basto. Era filho de Carlos Alves e Virgínia da Silva e nasceu em Suidros no dia 25 de abril de 1925. E foi ligado à terra que cresceu!
O meu avô Cândido com 21 anos, na altura já casado, a cumprir o serviço militar no Regimento de Cavalaria em Chaves, 1946. Fotografia enviada para a minha avó com dedicatória atrás - "Daqui te mando para tu veres o verdadeiro soldado de cavalaria...".

Mas a agricultura pouco dava, principalmente para quem trabalhava nela, e o apelo do volfrâmio foi uma luz ao fundo do túnel! E lá foi ele para as minas, carregado de sonhos e esperanças, como milhares de pessoas naquela altura. Começava a guerra e a "febre do volfrâmio"!

Imagens das Minas da Panasqueira, onde era explorado
o volfrâmio pelos Aliados, através da empresa inglesa
Beralt Tin & Wolfram Limited. Covilhã, Séc. XX, anos 40.
Na imagem de cima, a entrada principal da mina e na de
baixo, mulheres na apanha do volfrâmio.
In LEAL, Padre Manuel Vaz, As Minas da Panasqueira
Vida e História, Ano de 1945. Retirado do blogue
beira-baixa-antigas-imagens.blogspot.pt
Em Cerva, no início dos anos 40, em plena Segunda Guerra Mundial, a maioria das minas estava concessionada à Empresa Mineira de Sabrosa, SA (Emisa), que havia comprado as várias concessões de um dos seus sócios, José Cândido Dias e do francês que já lá estava desde 1913, Gustave Thomaz.

Palacete da Rua Barão de Nova Sintra, nº 119, no Porto, sede da Emisa e
do "Grupo Alemão do Porto", em 1944. Fotografia de Teófilo Rego, 1958.
In Arquivo Municipal do Porto.
A Emisa era uma das empresas que fazia parte daquilo que os serviços secretos americanos chamavam o "Grupo Alemão do Porto". Na verdade era uma teia complexa de relações entre empresas nas quais estavam a Emisa e a Companhia Mineira do Norte de Portugal (CMNP), também conhecida como "Companhia Alemã". Ambas as companhias que se dedicavam à extração de volfrâmio e que detinham muitas das minas do norte do país eram controladas pelo seu maior acionista, uma empresa metalúrgica alemã chamada Gesellshaft Fuer Elektrometalurgie (GFE), Dr. Paul Gruenfeld, com ligações também à famosa empresa alemã, fabricante de armamento para o regime nazi, a Krupp!
"Krupp saúda o Führer".

As empresas portuguesas eram controladas e administradas pelo representante e diretor da GFE, o alemão e alto funcionário do regime nazi, Kurt Dithmer. E aqui começava o intrincado esquema de relações e lobbies para controlar o volfrâmio e enviá-lo para a Alemanha para alimentar a máquina de guerra do Terceiro Reich.
Documento sobre Kurt Ditmer e o "Grupo Alemão do Porto" do
Tribunal Internacional Militar de Nuremberga, Alemanha, produzido
pelos EUA e classificado com "secret".
In Cornell University Library, Law Library, Donavan Nuremberg
Trials Collection.

Segundo documentação americana, outrora secreta, da coleção do General William Donovan, o "pai" da CIA,  Herr Dithmer era a aranha que tecia a teia que ligava várias empresas compradas por outras pessoas que estavam ligados secretamente a ele ou ao regime nazi, onde imperava a corrupção e a troca de favores e influências junto dos mais altos dirigentes do Estado Novo, nomeadamente com o Conde de Lumbrales, ministro das finanças de Salazar. Por cá morava com a sua amante Lina de Sousa na Quinta do Monte, em Ermesinde, apesar de ter deixado a mulher Frau Minnie e o filho, na Alemanha. Teria vindo para Portugal entre 1940 e 1941, possivelmente segundo ordens do presidente da GFE, Dr. Heins Gehm.
Paul Pleiger a comprimentar Hermann Göering.
Pleiger era presidente da Reichwerk, AG, fuer Erzberbau von
Eisenhuetten "Hermann Göering".
In Suddeutsche Zeitug.

A GFE era outra empresa cuja história recente tinha muitas pontas soltas... O seu anterior dono era um judeu chamado Paul Gruenfeld, mas em 1938 com a "arianização" a empresa é vendida a Heins Gehm e a Paul Pleiger, que também controlavam outras empresas, o último ligado a Hermann Göering, um dos mais poderosos do Terceiro Reich, fundador da Gestapo e considerado o sucessor de Hitler.

O meu avô passaria muito tempo nas minas, só regressaria a casa nos fins-de-semana, de certeza, e não sei se alguma vez se cruzou com Kurt Dithmer em alguma visita que este tenha feito ao Couto Mineiro de Adoria. Talvez... Gosto de pensar que sim! Cruzou-se certamente e muitas vezes com o responsável alemão que estava em Adoria, Hans Hermann Krull e que seria a ponte com Kurt Dithmer.

A inocência e o desconhecimento de toda aquela complexa trama passava ao lado de toda a gente, gente simples que via no volfrâmio a sua tábua de salvação. Não interessava se trabalhavam para os alemães ou para os ingleses. Queriam lá saber! A necessidade e o vil metal eram tudo. Aliás alemães e aliados conviviam ordeiramente na exploração mineira. Em Cerva, como em muitas minas de volfrâmio portuguesas, paredes meias com as minas dos alemães estavam as de São João de Escoureda, concessionadas em 1943 à Companhia Portuguesa de Minas, controladas pelos britânicos. A estes não era a necessidade de volfrâmio que os movia, mas sim impedir que os alemães conseguissem mais!
Trabalhos da Comissão Reguladora do Comércio de Metais, 1944.
In Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian.

Era a loucura! O preço do volfrâmio subiu, subiu... O Estado Novo viu-se obrigado a tentar controlar os preços e as remessas de volfrâmio que saíam do país e criou a Comissão Reguladora do Comércio de Metais, por onde tudo passava. Foi seu vice-presidente e depois presidente, Fernando Manuel Alves Machado, neto do famoso Conde de Alves Machado, que curiosamente era natural de Cerva! Foi ele também o responsável pelas negociações com os aliados e com a Alemanha pelo controle de volfrâmio!
Armazém da Comissão Reguladora de Comércio de Metais
onde era guardado o volfrâmio, que depois era distribuído
segundo os acordos comerciais. 1944.
In Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian.

Fernando Manuel Alves Machado,
Comissão Reguladora do
Comércio de Metais,
vice-presidente de 1942 a 1944
 e presidente de 1945 a 1946.
In geneall.net.
Era rentável trabalhar no minério. Muita gente enriqueceu, pessoas que nada tinham e de repente ficaram ricas. Uma ilusão! Muitos nunca tinham visto tanto dinheiro e resolveram gastar, gastar, gastar até não poder mais. Relatos há de pessoas que na altura até faziam cigarros com notas!

Claro que toda esta "febre" favoreceu o contrabando e a exploração clandestina. Havia quem explorasse nas suas terras, havia quem roubasse, apesar da apertada segurança. Mas a ocasião faz o ladrão... Tudo valia!

O meu avô não se deslumbrou! Era poupadinho e amealhou tudo o que ganhou, estando longe de imaginar todo o circuito obscuro do volfrâmio e até a proveniência do dinheiro com que eram feitos os pagamentos! Sim, como é que a Alemanha pagava as toneladas de volfrâmio? E eram muitas! Portugal foi o país europeu que mais exportou o famigerado minério!

Alianças de ouro pilhadas aos judeus enviados
para os campos de extermínio com vista à "SOLUÇÃO FINAL".
No fim da guerra foram encontradas pelos americanos nas minas
de sal de Heilbronn, Alemanha. 1945. 
Com o tempo vão se levantando as pontas do véu... Mais uma vez havia esquemas e mais esquemas. Com o começo da guerra o marco alemão começou a ser rejeitado e o Terceiro Reich não teve outra alternativa senão encontrar outras formas de pagamento... Em ouro, jóias, porcelanas... Sim, obviamente fruto das pilhagens aos países invadidos e dos milhões de judeus espoliados e exterminados no HOLOCAUSTO! No caso judeu, eram objetos confiscados, como jóias, obras de arte, barras de ouro, moedas, DENTES de ouro...

O ouro, em grande parte roubado aos bancos dos países ocupados, era refundido, ou não, e colocado na Suiça, país neutro, tal como Portugal, e passado para outros países neutrais como forma de pagamento, através do Banco Nacional Suíço. Era a chamada "lavagem de dinheiro" ou melhor de ouro! O Banco de Portugal possuía lá a misteriosa "conta C", onde eram feitos os depósitos.
Milhares de sacos cheios de lingotes de ouro escondidos pelos nazis
nas minas de sal de Merkers, Alemanha. No final da guerra as minas
foram descobertas pelos americanos repletas de ouro e obras de arte. 1945

Segundo documentos encontrados na estação fronteiriça espanhola de Canfranc, na época controlada pelos alemães através das SS e da Gestapo que estavam do lado francês, de Portugal vinham vários produtos como azeite, café, vinho, conservas e azeitonas, e claro, em enormes quantidades, o volfrâmio, tudo em direção à Alemanha. E de lá, via ferroviária vinham barras de ouro, muitas toneladas, que eram descarregadas e transportadas por Espanha em camiões até Portugal. Era o chamado "OURO NAZI"!

O Presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar e o
Presidente da República, Óscar Carmona, Séc. XX, anos 40.
In Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian.
Era o ouro que encheu as reservas de Portugal, o ouro que Salazar guardou religiosamente e fez dele uma das maiores reservas de ouro do mundo. Em 1939, no início da guerra, Portugal tinha cerca de 65 toneladas em reserva e em 1945, no final da guerra, tinha a mais cerca de 310 toneladas! Por Canfrac, após julho de 1940, altura em que a França foi ocupada pelos nazis e permitida a circulação terrestre até à Alemanha, passaram pelos menos 228 toneladas de ouro rumo a Portugal.

Bem, aos mineiros o ouro nunca chegou, chegavam os escudos, as notas que os mais excêntricos transformavam em mortalhas de cigarros. É o chamado "queimar" dinheiro, literalmente.

A 5 de junho de 1944 Portugal suspende a exploração
de volfrâmio por pressões britânicas e americanas.
In Diário de Lisboa, 7 de junho de 1944,
Fundação Mário Soares.
E tudo tem um fim... Um dia Salazar proibiu temporariamente a exploração de volfrâmio! Estava a ser lucrativo, mas... Os ingleses e os americanos pressionaram, pressionaram, tudo para acabar aquele jogo de vender aos alemães o volfrâmio para a sua máquina de guerra. O aviso foi feito sugerindo que o seu incumprimento poderia levar ao fim do Estado de Novo e à deposição de Salazar. O regime cedeu e obedeceu!

Mas a guerra estava quase no fim! E com ela acabou a "febre", desvalorizou o volfrâmio, acabaram muitas fortunas. 

O meu avô voltou para Atei e casou. Consigo vieram os problemas respiratórios, possivelmente ligados à "doença das minas", que nunca mais o deixaram. Com o dinheiro do volfrâmio ergueu a sua vida e, mais tarde, comprou parte de uma propriedade de família que havia pertencido aos seus trisavós António da Silva Borges e Maria Joaquina da Cunha Forte e que o tempo havia desmembrado por vários herdeiros. Quis o destino que essa propriedade fosse minha...

Ruínas do complexo das Minas de Adoria, em Cerva. Atualmente quase todos
os edifícios estão arruinados e alguns em risco de desaparecerem completamente.
As Minas de Adoria continuaram, mas não com o fulgor da Segunda Guerra que havia trazido o sonho do "ouro negro". Chegaram a trabalhar lá cerca de 5000 pessoas em condições miseráveis e extremamente difíceis. Todo o trabalho era manual, não havia luz elétrica. Só em 1956 é que ela chegou!

Em 1972 acabou a extração! Veio o abandono, o saque de materiais, o saque do ferro. Muitos carris foram vendidos e alguns até reciclados para fazer ramadas de vinha... Na propriedade que o meu avô comprou ainda existem alguns...

São estas as memórias das minas e da obscuridade por detrás delas, que o tempo vai desvanecendo e apagando deste filme a preto e branco.

Aquele pedaço de volfrâmio, aquele que o meu avô trouxe das minas e que eu gosto de pensar que não acabou numa longa viagem até à Alemanha, numa blindagem de um tanque de guerra nazi, DESAPARECEU! Estranhamente desapareceu quando o meu avô morreu! Como se morressem também as memórias daquele tempo... Indiretamente ficaram as terras compradas com o volfrâmio maldito e os carris que suportam as ramadas de vinha... E ficou na minha cabeça a imagem daquela pedra preta no cantinho da gaveta da mesa de cabeceira. Lembro-me tão bem do seu peso! Estranhamente pesada, apesar do seu pequeno tamanho, como se lá estivesse guardada toda a culpa do Homem, toda a dor e terror infligidos, toda a morte causada pelo louco Führer... E todo o peso do esforço dos MINEIROS e do duro TRABALHO para ganhar a LIBERDADE de uma vida melhor...

"ARBEIT MACHT FREI" 
"O trabalho liberta", famosa frase escrita no portão do campo de concentração de Auschwitz.
Adolf Hitler, numa das suas características poses de discurso. Cerca de 1927.
Fotografia de Heinrich Hoffmann, in Das Budesarchiv.

Agradecimento especial
A Virginie Vila Verde do projeto Trajar do Povo em Portugal pela sua ajuda preciosa na pesquisa de raras imagens de época sobre minas de volfrâmio.

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

"SE O PEREIRA CÁ ESTIVESSE..." - O "Sir" de Atei que podia ter mudado a História de Portugal!


Sons... Os rodados de um landau, os cascos dos cavalos sobre a calçada, vozes, muitas vozes, muito ruído de fundo e de repente... Pum! Um estrondo, o som de um tiro abafado pelo ruído de fundo e nada... Ninguém se apercebeu do tiro! Aquele estrondo marcava o inicio da "batida às feras", começava a "caça"... No dia 1 de fevereiro de 1908, quando regressavam de uma estadia em Vila Viçosa, foram abatidos a tiro o rei D. Carlos I e o seu filho herdeiro do trono, o Príncipe Real D. Luís Filipe. Estes breves momentos, há 108 anos, do famoso regicídio marcaram profundamente a História de Portugal. Foi o início do fim de uma era... 
Desenho representando os momentos do regicídio. Capa do suplemento ilustrado "Le Petit Journal", 16 de fevereiro de 1908.
E se a história tivesse sido diferente? E se naquele fim de tarde frio no Terreiro do Paço não se tivesse ouvido nenhum tiro, não tivesse passado nenhum landau real, apenas as habituais carruagens que percorriam a velha Lisboa? Haveria alguém capaz de mudar a história? Talvez... Quem?
Manuel Augusto Pereira e Cunha.
Fotografia de Augusto Bobone - Pintor e Fotógrafo
das Casas Reais de Portugal e Espanha,
Séc. XX, início.
Fotografia gentilmente cedida pela sua sobrinha
D. Teresa Gil Pereira e Cunha.

Não vou, nem quero contar esta história, a história do regicídio! Já muita tinta se gastou para descrever o momento! Chegaram até aos nossos dias as descrições das testemunhas, incluindo a do próprio rei D. Manuel II, que estava no landau e também foi ferido num braço. O processo de investigação do caso estranhamente e convenientemente desapareceu... Ainda entregaram uma cópia ao próprio rei D. Manuel já no exílio em Inglaterra, mas quando este morreu, em 1932, o processo sumiu. Nada foi encontrado na sua casa de Fulwell Park!

Mas vou e quero contar a história de um homem das Terras de Basto, monárquico convicto, muito amigo da família real e que hipoteticamente poderia ter sido um ator decisivo numa mudança de cena, uma cena drasticamente diferente daquela tragédia! Chamava-se Manuel Augusto Pereira e Cunha.

A Casa de Barreiros, na freguesia de Atei, concelho de Mondim de Basto.
Esta Casa, uma das mais importantes casas agrícolas da região, ainda hoje
pertence à família Pereira e Cunha. Foi em meados do séc. XX profundamente
transformada com elementos arquitetónicos vindos de outras casas da região,
 incluindo a capela e a pedra de armas, que segundo Eduardo Teixeira Lopes,
terá vindo da Casa de Sub-Ripas de Vale do Bouro (LOPES, Eduardo Teixeira,
Mondim de Basto - Memórias Históricas, 2000).
Foi em 1855, no dia 15 de outubro que nasceu um menino, na Casa de Barreiros, em Atei, Mondim de Basto, no seio de uma família da pequena aristocracia rural. Manuel Augusto era filho de Joaquim António da Cunha e Silva e D. Ana Diniz Pereira. A linhagem da grande Casa de Barreiros viria do lado dos seus avós paternos, Manuel José da Cunha e Benta Alves Ferreira.

Tinha mais dois irmãos, Bento e Torcato, mas foi ele que herdou Barreiros. No entanto não ficou por muito tempo em Atei!
Assinatura de seu pai em documento de quitação de pagamento
datado de  31 de janeiro de 1876.
(nesta data, Joaquim António da Cunha e Silva já estava viúvo)
In Arquivo Distrital de Vila Real.

Menino rico, quando cresceu, em 1871 foi estudar para o liceu, em  Coimbra. E o excelente aluno ingressou na mais velha universidade portuguesa, a Universidade de Coimbra. Escolheu direito e apesar de ter sido convidado para dar aulas, no final da formatura, em 1877, não quis! Queria experimentar a política!

Claro que para isso não bastava ter dinheiro, era preciso ter influência, era preciso ter amigos de peso! Na faculdade já tinha alguns... O poeta António Cândido, o Conde de Monsaraz, D. Francisco de Vieira e Brito, futuro Bispo de Lamego...

A família real portuguesa. O rei D. Carlos I ladeado pela rainha D. Amélia e a
sua mãe, a rainha viúva D. Maria Pia. Em baixo, ao centro o seu irmão o infante
D. Afonso, ladeado pelo Príncipe Real D. Luís Filipe e o futuro rei D. Manuel II.
Como membro do Partido Regenerador foi eleito deputado pelo círculo de Cabeceiras de Basto, depois Administrador dos concelhos de Mondim de Basto e Vila Real e secretário dos Governos Civis da Horta e de Santarém. A 27 de janeiro de 1890 é convidado para Governador Civil de Faro, depois do Porto e finalmente de Lisboa no final do ano de 1901. Terá sido, possivelmente, nos 4 anos que se seguiram, altura em que ocupou este cargo que se terá aproximado mais da corte e da família real.

A amizade entre Manuel Augusto Pereira e Cunha e o seu rei era tão grande... Quase idolatração! A consideração que o rei tinha por ele era enorme. Tinha-o como um ótimo conselheiro e um verdadeiro amigo. Chamava-lhe o "Pereira"...

O rei D. Carlos e o irmão, o infante D. Afonso,
durante um torneio de florete
na Tapada da Ajuda, em Lisboa.
 Uma das raras fotografias em que o rei
 aparece a sorrir e numa pode descontraída,
 com o seu inseparável charuto na mão.
Fotografia de Joshua Benoliel, 1907.
Apesar de tudo, apesar da sua aproximação ao rei, nunca aceitou nenhum título. Penso que não queria ser mais um barão, mais um visconde... "Foge cão que te fazem...". Bem, talvez uma comenda não fizesse mal... Em 1903 o rei agracia-o com a Comenda e a Grã-Cruz da Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa e no ano seguinte com a Grã-Cruz da Ordem de Cristo.

Terço oferecido a Manuel
Augusto Pereira e Cunha
pelo Papa Pio X
(Pontificado 1903-1914)
O seu grande amigo, o ministro Hintze Ribeiro, chefe do partido Regenerador várias vezes o convidou para ministro, mas ele não quis... Já era Par do Reino, também foi secretário do Ministério do Interior, para quê mais honrarias? Era um homem simples, que nunca procurou fama. E realmente não a teve... Deve ter sido por isso que o tempo encarregou-se de o esquecer!

Em abril de 1903 o rei Eduardo VII de Inglaterra visita oficialmente Portugal.

Fotografia tirada após um almoço oferecido ao rei inglês, no Palácio da Pena. Ao centro, sentados, estão o rei D. Carlos e Eduardo VII. Cliché A. Novaes.
Recepção ao rei Eduardo VII, no Terreiro do Paço. Lisboa, abril de 1903.
D. Carlos mandou preparar uma enorme recepção para o seu primo inglês. E por ocasião desta visita Eduardo VII resolveu agraciar o então Governador Civil de Lisboa com o título de SIR e de Grande Oficial da Ordem do Nilo. O ilustre de Atei tornou-se assim em Sir Manuel Augusto Pereira e Cunha. Não quis ser um barão português e virou um Sir inglês!

A grande pirâmide e a esfinge em Gizé, Egito.
Fotografia do séc. XIX.
Um dia fartou-se da política! Deixou tudo... O seu país, a sua família, a sua querida Atei, a corte e os seus grandes amigos, o casal real D. Carlos e D. Amélia. Foi para o Egito! No dia 15 de dezembro de 1903 aceita o cargo de juiz do Tribunal de Mausourah. E ficou naquele país por mais de 20 anos. Aquela cultura antiga encantou-o! Aliás desde o séc. XIX que o Egito e toda aquela cultura ancestral estava na moda, a moda das viagens, das caças aos tesouros e relíquias, das grandes escavações arqueológicas, das múmias...

Bento da Cunha e Silva com a sua mulher
D. Maria Engrácia Machado e Moura e a filha mais
velha, D. Amélia Maria Machado e Cunha.
Séc. XX, anos 10.
Créditos fotográficos de GOMES, Joaquim da Silva,
Conselheiro Pereira e Cunha,
Jurista e Político 1855 - 1837, 2007.
Em Atei, a administrar os seus bens ficou o seu irmão, Bento da Cunha e Silva, casado com D. Maria Engrácia Machado e Moura, da Casa da Quinta da Dónega, também em Atei, e neta do também famoso e muito rico, o Conde de Alves Machado. Também ela foi uma ajuda essencial, habituada a gerir a casa e a tomar conta dos seus irmãos mais novos após a morte precoce de sua mãe, D. Amélia Alves Machado, filha do conde.

Postal ilustrado da Rua da Estação de Ramleh.
Alexandria, Egito, 1903.
A 22 de janeiro de 1907 parte para a cidade de Alexandria para ocupar o cargo de juiz do tribunal daquela cidade. E não, o Egito não era só pirâmides, templos, túmulos e areia! Alexandria era uma cidade muito cosmopolita, com arquitetura de feições europeias, talvez a mais ocidentalizada do Egito. Manuel Augusto Pereira e Cunha sentiu-se verdadeiramente em casa, naquela famosa cidade, fundada por Alexandre O Grande onde existiram duas das mais conhecidas maravilhas do mundo antigo, o Farol e a Biblioteca de Alexandria. Aliás alguns anos antes, em 1900, havia sido descoberta outra das sete maravilhas, as Catacumbas de Kom El Shoqafa.

Em 1908 dá-se o regicídio! Manuel Augusto Pereira e Cunha estava longe... A notícia caiu-lhe como uma bomba! Foi um enorme desgosto ver assim desaparecer o seu rei, o seu amigo, aquele que tanto admirava. Um duro golpe que o marcou profundamente. Quem lhe dera ter podido impedir de alguma forma aquela tragédia. Será que podia? Segundo palavras da própria rainha D. Amélia, SIM! Consta que a rainha terá dito uma frase que ficou para a posteridade...

 "Se o Pereira cá estivesse, não tínhamos feito esta viagem!".
O rei D. Manuel e a sua mãe, a rainha viúva D. Amélia,
rodeados pelos seus cães no Palácio da Pena.
Sintra, 1909.

Manuel Augusto Pereira e Cunha
In Ilustração nº 314, 10 janeiro 1939.
Segundo a rainha, e dada a perigosa conjuntura na época, pois alguns dias antes, a 28 de janeiro, já tinha havido uma tentativa de revolução, se o "Pereira" lá estivesse com eles em Vila Viçosa e porque era considerado uma pessoa sábia, sensata e muito ponderada, tinha aconselhado o rei a não vir para Lisboa naquele dia! Talvez devesse ter esperado um pouco, alguns dias, até a "poeira assentar"... O rei teria certamente ouvido e acatado o conselho do "Pereira"! E também a rainha, pois ela queria à força vir embora para Lisboa naquele fatídico dia. "Só se eu quebrar uma perna é que não volto para Lisboa no dia 1 de fevereiro!", disse ela ao filho D. Manuel, dias antes quando este voltou sozinho para a capital por causa dos estudos de preparação para a Escola Naval.

O que é certo é que Manuel Augusto Pereira e Cunha não estava lá, não os aconselhou e o atentado premeditado aconteceu. Nem o atraso provocado pelo descarrilamento que aconteceu na Casa Branca, com o comboio real que os trazia de Vila Viçosa impediu a tragédia!  Ou também faria parte do plano do atentado? O rei e o seu herdeiro morreram, subiu ao trono o filho mais novo D. Manuel e reinou apenas por mais dois anos. O fim anunciado de 800 anos de monarquia ficou escrito naquele dia!

Anel oferecido  pelos seus
colegas e amigos do Tribunal
de Alexandria quando se
veio embora para Portugal.
Manuel Augusto Pereira e Cunha, longe no Egito, recebe a notícia da proclamação da República a 5 de outubro de 1910, e a tristeza de saber que a família Real parte para o exílio rumo a Gibraltar. No entanto, vai mantendo o contato com eles através de correspondência trocada com a rainha D. Amélia.

Fica no Egito até 31 de janeiro de 1925, altura em que resolve abandonar o cargo de Presidente do Tribunal de Alexandria. Quis regressar à sua querida Atei e descansar. Naquelas terras do norte de África deixou muitas saudades... Foi um juiz tido como sábio e extremamente rigoroso. Diz-se que as suas sentenças nunca tiveram apelação!

Manuel Augusto Pereira e Cunha rodeado pelas mulheres da família na sua Casa de Barreiros, em Atei.
Fotografia gentilmente cedida pela sua sobrinha D. Teresa Gil Pereira e Cunha.
D. Maria Engrácia Machado e Moura com os filhos,
D. Ana Maria Machado e Cunha, Joaquim Machado
Pereira e Cunha e Amélia Maria Machado e Cunha.
Séc. XX,  final da década de 20.
Fotografia gentilmente cedida por D. Teresa Gil Pereira e Cunha,
filha de Joaquim Machado Pereira e Cunha.
De volta a Atei, à sua propriedade de Barreiros, vive os seus anos de velhice descansados, sem problemas de maior, apenas contemplando o melhor da natureza... O chilrear dos melros na primavera, o regresso do verde intenso que cobre a paisagem com a chegada dos primeiros dias quentes... Acompanha também de perto as atividades agrícolas nas suas propriedades, mas é ao seu sobrinho Joaquim Machado Pereira e Cunha, filho do seu irmão Bento, que resolve deixar em herança os seus bens, a sua amada Casa de Barreiros. Afinal Manuel Augusto Pereira e Cunha nunca havia casado nem tido herdeiros, pelo menos oficialmente! O seu sobrinho, futuramente conhecido como o "Morgado de Barreiros" assume na maioridade a gestão de todas as propriedades. E é este ramo da família que perdura no tempo na velha Casa de Barreiros. O "Morgado de Barreiros", também conhecido popularmente por "Pereira e Cunha" vem a casar com D. Maria José Sottomayor, da Casa do Reguengo, em Celorico de Basto. O casamento infelizmente foi curto e volta a casar em segundas núpcias com D. Maria Cacilda de Matos Gil, de uma família riquíssima de Santo Tirso. Chamavam-na  a "Senhora de Barreiros".
Manuel Augusto Pereira e Cunha (de guarda-chuva na mão) rodeado por proprietários e agricultores de Atei.
Séc. XX, década de 30.
Fotografia gentilmente cedida pela sua sobrinha D. Teresa Gil Pereira e Cunha.
Placa colocada nas arcadas do Terreiro do Paço, em Lisboa, no local
exato onde ocorreu o regicídio, por ocasião do seu centenário.

Sir Manuel Augusto Pereira e Cunha morre a 19 de janeiro de 1937 na Casa de Barreiros. Curiosamente o seu último desejo foi ser sepultado com os retratos dos seus queridos amigos, o rei D. Carlos e a rainha D. Amélia, na altura ainda viva. E "seja feita a vossa vontade"... Sobre o seu caixão foram colocados os retratos Reais. E lá permanecem, no jazigo do cemitério de Atei, sete palmos abaixo de terra, juntos para toda a eternidade.


Que saudades sentia ele do seu rei! Quem lhe dera ter impedido aquele desfecho terrível, aquela dor da sua rainha, a dor de uma mulher, de uma mãe, a dor de uma nação adormecida e apática! Mas não impediu, nem ele, nem ninguém! Infelizmente ninguém advinha o futuro, acho eu! Uma coisa é certa, ninguém volta atrás no tempo! Porque se voltasse uma simples ação, algumas simples palavras poderiam mudar radicalmente o futuro.

Fotografia gentilmente cedida
por D. Teresa Gil Pereira e Cunha.

Video  do Expresso Online "Viagem ao dia do regicídio", contado pela investigadora Margarida Magalhães Ramalho. In www.youtube.com



E SE O PEREIRA LÁ ESTIVESSE? E SE...



"Escrever: Escrever para não gritar: Para não perder a razão - sim, para não perder a razão. Para expulsar; por um instante que seja, as terríveis imagens deste dia, e suportar o longo horror desta noite, a primeira de todas as que estão para vir. Escrevo para mim. Escrevo para não enlouquecer..."

Palavras da rainha D. Amélia no "Diário de Dona Amélia de Orleães e Bragança" alusivo ao dia do Regicídio.






Agradecimento especial:
A D. Teresa Gil Pereira e Cunha, sobrinha-neta de Manuel Augusto Pereira e Cunha, que tão gentilmente se disponibilizou para ajudar.