Os Mortos de Sobrecasaca

"Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis, alto de muitos metros e velho de infinitos minutos, em que todos se debruçavam na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca. Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos. Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava, que rebentava daquelas páginas."

Carlos Drummond de Andrade, Os Mortos de Sobrecasaca (Sentimento do mundo, 1940)

sábado, 17 de outubro de 2015

Quando era pequenino queria ser...

Baltazar da Silva Castro 
Já se perguntou alguma vez porque é que gosta disto ou daquilo? Porque é que escolheu seguir determinado caminho na sua vida?

-"O que é que queres ser?", perguntavam-me em pequeno, e eu respondia: -"Arquiteto!" Mas saber desenhar não me bastava, também gostava de História, fascinavam-me os edifícios antigos... Enveredei pela última opção, o Património!

Desde há muito tempo que tenho muitas perguntas na minha cabeça para as quais ainda não tinha obtido resposta! Os gostos, as preferências, as aptidões serão genéticas, ou meramente resultantes das nossas vivências?

As minhas dúvidas dissiparam-se um pouco quando descobri este homem... 

Baltazar na igreja do Mosteiro de Paço de Sousa, em Penafiel,
durante as obras de restauro dirigidas por ele.
Fonte: www.monumentos.pt
Tudo começou há uns bons anos atrás quando me deparei com uma assinatura de um "B" muito bem desenhado num documento do arquivo da instituição para a qual eu tinha começado a trabalhar, a antiga Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Esse "B" era a inicial de Baltazar da Silva Castro, "desconhecido" por mim até aquele momento, e sobrinho do meu trisavô Joaquim José, conhecido como o "Manco".

Mas, vamos recuar ainda mais no tempo...

Corria o ano de 1891, quando a 1 de maio, no lugar de Baloutas, em Painzela, Cabeceiras de Basto, nasceu Baltazar, filho dos meus tios-trisavós José Joaquim da Silva Castro e Ana da Silva Ramalho.
Baltazar da Silva Castro. Séc. XX, anos 10.

Como filho mais novo, os seus pais quiseram lhe dar a melhor das educações. O seu pai, pessoa culta e viajada, negociante no Rio de Janeiro, deve ter sido certamente uma boa influência na sua escolha profissional. O seu gosto pelas Belas Artes levou-o a ingressar em 1914 no curso de Arquitetura.

Mariana Amélia de Abreu e Baltazar da Silva Castro. Séc. XX, anos 20.
Quatro anos mais tarde concluía o curso na Escola de Belas Artes do Porto. É por esta altura que conhece a mulher da sua vida, Mariana Amélia de Abreu.

A 23 de Maio de 1918 casam no Porto. Mariana irá acompanhá-lo sempre, até ao final dos seus dias.

Mas é ainda durante os estudos que começa a traçar o seu caminho pelo mundo das obras públicas, que o irá conduzir ao seu "cavalo de batalha", o restauro do Património Arquitetónico português.

Em 1927 Baltazar de Castro, nome que adotou, é nomeado arquiteto da 3.ª Repartição de Monumentos e Palácios, Secção Norte, da Direção-Geral de Belas Artes. Mas é em 1929 que é transferido para a Direção dos Monumentos do Norte, pertencente à recém-criada Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais - DGEMN, ocupando 1 ano depois o cargo de diretor dos Monumentos do Norte.

Baltazar da Silva Castro no Funchal, Madeira.
Fonte: www.monumentos.pt
É partir daí que inicia o seu contributo para o restauro dos nossos "tesouros nacionais". Igrejas, mosteiros, capelas, palácios, castelos... Quase todos os restauros tiveram a mão de Baltazar de Castro, principalmente os de origem medieval e quinhentista, seguindo a política de então, em que o Estado Novo privilegiava as "glórias" do passado de Portugal, ou seja, a época áurea do período da Fundação e dos Descobrimentos.

O aspeto destes "tesouros" do Património português, tal como hoje os conhecemos, deve-se em grande parte aos restauros feitos desde os anos 20 a 50, dirigidos por Baltazar de Castro, que levou à "recriação" do aspeto que se pensaria original e primitivo, politica em voga na época do Estado Novo, que foi beber aos ensinamentos revivalistas do arquiteto francês Viollet-le-Duc.

A área geográfica destes monumentos abrange quase todo o território nacional, com especial destaque para o Norte de Portugal Continental, a Madeira e os antigos territórios do Ultramar. São muitos os exemplos de restauros dirigidos por ele, nomeadamente: a Sé de Braga, Vila Real, Viseu e Sé Velha de Coimbra, Paço dos Duques e Castelo de Guimarães, Igreja de Nossa Senhora da Oliveira, também em Guimarães, Domus Municipalis e Castelo de Bragança, Igreja de Cête, Mosteiro de Travanca, Biblioteca da Universidade de Coimbra, Mosteiro da Batalha... e muitos mais!

Mariana e Baltazar em Pangim, Índia. Anos 50.
Foi também autor de projetos, principalmente em parceria com Rogério de Azevedo, destacando-se a Garagem do Jornal "O Comércio do Porto" e a Faculdade de Medicina do Porto. Projetou também várias escolas primárias, nomeadamente a da sua terra natal, Painzela, em Cabeceiras de Basto.

Em 1948 é nomeado arquiteto diretor da Direção dos Serviços de Monumentos Nacionais da DGEMN e arquiteto inspetor do Conselho das Obras Públicas.

Apaixonado pela arquitetura portuguesa Além-Mar partiu em missão durante vários meses para Moçambique, Angola e a então Índia Portuguesa.

Em 1927 foi condecorado com o grau de Oficial de Santiago da Espada, pelos serviços prestados no restauro dos monumentos nacionais. Em 1942 é condecorado pelo Presidente da República, Comendador da mesma ordem.
Colar de Oficial da Ordem de Santiago
da Espada atribuído a 17 de dezembro
de 1927.



Pormenor do diploma de Oficial de Santiago
 da Espada com a assinatura do Presidente
 da República de então, Óscar Carmona.

Mas, Baltazar não dedicou a sua vida só ao trabalho, apesar da sua frenética atividade, esteve sempre ao lado da sua família, dos seus três filhos, Celestino, Baltazar e Mariano, do seu "filho do coração" António, e dos seus muitos netos.

Os filhos, Baltazar, Mariano e Celestino,
este último também arquiteto.
Os meus familiares mais velhos, em Cabeceiras de Basto, ainda se lembram do barulho do seu carro a chegar, da agitação e alegria dos primos mais pequenos que se gladiavam para carregarem as malas, quando vinha visitar a sua mãe, a tia D. Ana.
Baltazar e sua mãe. Painzela, Cabeceiras de Basto, anos 40.

O Comendador Baltazar da Silva Castro, figura cimeira da história do restauro do Património Arquitetónico português, morreu a 10 de outubro de 1967, na sua quinta, em Oliveira, Póvoa de Lanhoso.

Pois é, afinal os nossos gostos e aptidões podem ter raízes no Passado! Mera coincidência, talvez sim, ou talvez não! Eu prefiro acreditar que nós não somos só aquilo que a sociedade nos torna, mas também aquilo que carregamos nos genes, o que nos "corre nas veias". 

Por isso, digo, é fundamental conhecer e descobrir o Passado, para compreendermos o nosso Presente...

Baltazar com a sua mulher, filho, noras, netos e o seu cão,
na sua quinta em Oliveira, Póvoa de Lanhoso. Anos 60.

Links: Biografia Baltazar da Silva Castro

sábado, 3 de outubro de 2015

O relógio da saudade


Tic-tac, tic-tac, tic-tac... É engraçado como prevalecem as memórias, por cheiros, imagens e neste caso pelo som, o som do bater do relógio da casa da minha avó.

Tenho muitas recordações dela, obviamente, mas o relógio não me sai da cabeça! Aquele bater ritmado e certinho do relógio de sala, e principalmente a música das horas, quartos e meias horas com um possante "Avé-Maria"!

Este "tic-tac" é o mote para falar daquilo que me apetece realmente lembrar, a minha AVÓ, que fazia hoje 102 anos, se fosse viva!

A minha avó Glória com 24 anos de idade.
Maria da Glória da Silva Castro nasceu a 3 de outubro de 1913, em "vésperas" da 1ª Grande Guerra, no pequeno e isolado lugar de Baloutas, em Painzela, Cabeceiras de Basto. Os seus pais, Julinha da Silva Castro e Adriano José Machado, eram o casal cujo amor foi proibido e censurado pelo meu trisavô Joaquim José, o "Manco".

Ao contrário de sua mãe, a minha avó já não nasceu no seio de uma família abastada,  não teve direito a ser "inha" ou Glórinha, pois as vicissitudes da vida e o orgulho do seu avô "Manco" levaram a que a família de Julinha e Adriano tivesse de lutar para vencer e "sobreviver" naquela época tão difícil marcada por duas Guerras Mundiais e pelo "orgulhosamente sós" do Estado Novo.

Numa casa cheia de gente, com mais 8 irmãos, numa coisa a sua infância deve ter sido parecida com a de sua mãe Julinha, foi feliz e livre! Livre para correr pelos campos e ruas da aldeia com os irmãos e com os primos da frente, que moravam na rica Casa do Manco.

Mas, naquela época difícil, cedo teve de sair de casa e ir trabalhar, primeiro na vizinha Casa da Breia e depois na Casa do Mosteiro, para a família do famoso Barão de Basto, Júlio José Fernandes Basto.

O meu avô, Avelino Gonçalves. Anos 40.
A Casa do Mosteiro ficava no edifício mais imponente e emblemático da vila de Cabeceiras de Basto, o antigo e extinto Mosteiro beneditino de São Miguel de Refojos.

Entrou para o mosteiro como cozinheira da família do Barão. E foi lá que o destino a fez cruzar-se com o amor da sua vida, o meu avô!

Avelino Gonçalves era o seu nome, nascido a 13 de agosto, também de 1913, filho de Albino Gonçalves e Laurinda Borges, de uma família com longa tradição na arte da carpintaria e marcenaria. Avelino era natural da vizinha localidade de Atei, em Mondim de Basto e tinha ido trabalhar para o sobrinho do Barão não como mestre carpinteiro mas como feitor de sua Casa.

O meu avô era o braço direito da estranha figura do Nuno Fernandes Basto, que também era conhecido como "Barão", apesar do titulado ser o seu tio! - "Vivia de noite, pouco parava em casa e estava sempre a viajar", dizia o meu avô, que o tinha de acompanhar para todo o lado. Quando estava no mosteiro arranjava sempre desculpas para ir à cozinha espreitar aquela que não lhe saía da cabeça, a sua Glória.

Despesa do casamento dos meus avós apontada
no livro de contas do meu avô Avelino.
Um dia, Avelino encheu-se de coragem e pediu Glória em casamento. Ela, rendida de amores por ele, aceitou!

O casamento foi "abençoado" pelo "Barão" que impressionado pela robustez das formas da minha avó, murmurou ao ouvido do seu fiel feitor, com um ar muito machista - "Bem escolhida Avelino! Uma mulher para ser boa, o homem deve dar dois tombos em cima dela e não cair abaixo...!"

A 19 de Março de 1938, Glória e Avelino casaram na igreja do Mosteiro de São Miguel de Refojos de Basto.

Casamento feito, nova vida... Avelino e Glória despediram-se do excêntrico "Barão" e foram morar para Atei. Compraram a casa que havia sido do avô materno de Avelino, no lugar de Fontelas e dedicaram-se a novas profissões. A minha avó como dona de casa e mãe de família e o meu avô à arte da carpintaria, que tinha atravessado gerações e gerações de Gonçalves...

Fotografia tirada no dia de casamento dos meus avós. Ao centro,  os
meus bisavós Adriano e Julinha, ladeados pela esquerda pela minha
tia-avó Amélia e pela direita, a minha avó Glória. O meu avô não
quis aparecer na fotografia do seu casamento porque estava doente!
Cabeceiras de Basto, 19 de Março de 1938.

Vieram os filhos, 6 ao todo... O meu tio António, a tia Laurinda, que morreu em criança, o meu pai Joaquim, a tia Fátima, o tio Albino e a tia Amélia.
A minha avó com a minha tia Fátima ao colo, o  meu
pai, do lado esquerdo, e pelo meu tio António, do lado direito.
1950.

Todos nasceram ao som do "tic-tac" do relógio, não o dos toques "Avé-Maria" das minhas recordações, mas de outro muito mais antigo, herança dos meus tios-trisavós, Bento e Carolina, da Casa do Paço, em Atei.

É engraçado como simples objetos que atravessam gerações e gerações nos marcam! Ao meu pai, o antigo relógio do Paço, que o viu nascer e crescer, no grande quarto chamado de "casa de lá", e a mim o relógio da sala, que "cantava" fortemente o "Avé-Maria" ao meio dia em ponto nos saudosos almoços de domingo.


Os meus avós, pai e tios. Anos 50.
Os meus avós e tios. Início dos anos 60.

Os meus avós. Porto, 10 de junho de 1989.
No dia 5 de Março de 1992 morre o meu avô Avelino. A minha avó vê-se sozinha, perdida, sem o amor da sua vida, que a acompanhou durante 54 anos de casamento. São poucos os casamentos que resistem tanto tempo... Glória nunca mais foi a mesma! Guardo até esta altura as melhores recordações dela, o seu sorriso, as suas palavras sábias...

A minha avó, à semelhança da sua mãe Julinha, foi-se esquecendo lentamente de tudo, do marido, dos filhos, dos netos, das boas lembranças e recordações guardadas ao longo da vida. 

Na madrugada chuvosa de 7 de dezembro de 2000, enquanto dormia, a minha avó Glória morreu.

Na sua casa já não se ouvem os "tic-tacs", apenas um insuportável SILÊNCIO...! Ficam as memórias sonoras dos relógios que marcaram várias gerações, eu, o meu pai, os meus tios e quem sabe a minha avó...