Os Mortos de Sobrecasaca

"Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis, alto de muitos metros e velho de infinitos minutos, em que todos se debruçavam na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca. Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos. Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava, que rebentava daquelas páginas."

Carlos Drummond de Andrade, Os Mortos de Sobrecasaca (Sentimento do mundo, 1940)

sábado, 3 de outubro de 2015

O relógio da saudade


Tic-tac, tic-tac, tic-tac... É engraçado como prevalecem as memórias, por cheiros, imagens e neste caso pelo som, o som do bater do relógio da casa da minha avó.

Tenho muitas recordações dela, obviamente, mas o relógio não me sai da cabeça! Aquele bater ritmado e certinho do relógio de sala, e principalmente a música das horas, quartos e meias horas com um possante "Avé-Maria"!

Este "tic-tac" é o mote para falar daquilo que me apetece realmente lembrar, a minha AVÓ, que fazia hoje 102 anos, se fosse viva!

A minha avó Glória com 24 anos de idade.
Maria da Glória da Silva Castro nasceu a 3 de outubro de 1913, em "vésperas" da 1ª Grande Guerra, no pequeno e isolado lugar de Baloutas, em Painzela, Cabeceiras de Basto. Os seus pais, Julinha da Silva Castro e Adriano José Machado, eram o casal cujo amor foi proibido e censurado pelo meu trisavô Joaquim José, o "Manco".

Ao contrário de sua mãe, a minha avó já não nasceu no seio de uma família abastada,  não teve direito a ser "inha" ou Glórinha, pois as vicissitudes da vida e o orgulho do seu avô "Manco" levaram a que a família de Julinha e Adriano tivesse de lutar para vencer e "sobreviver" naquela época tão difícil marcada por duas Guerras Mundiais e pelo "orgulhosamente sós" do Estado Novo.

Numa casa cheia de gente, com mais 8 irmãos, numa coisa a sua infância deve ter sido parecida com a de sua mãe Julinha, foi feliz e livre! Livre para correr pelos campos e ruas da aldeia com os irmãos e com os primos da frente, que moravam na rica Casa do Manco.

Mas, naquela época difícil, cedo teve de sair de casa e ir trabalhar, primeiro na vizinha Casa da Breia e depois na Casa do Mosteiro, para a família do famoso Barão de Basto, Júlio José Fernandes Basto.

O meu avô, Avelino Gonçalves. Anos 40.
A Casa do Mosteiro ficava no edifício mais imponente e emblemático da vila de Cabeceiras de Basto, o antigo e extinto Mosteiro beneditino de São Miguel de Refojos.

Entrou para o mosteiro como cozinheira da família do Barão. E foi lá que o destino a fez cruzar-se com o amor da sua vida, o meu avô!

Avelino Gonçalves era o seu nome, nascido a 13 de agosto, também de 1913, filho de Albino Gonçalves e Laurinda Borges, de uma família com longa tradição na arte da carpintaria e marcenaria. Avelino era natural da vizinha localidade de Atei, em Mondim de Basto e tinha ido trabalhar para o sobrinho do Barão não como mestre carpinteiro mas como feitor de sua Casa.

O meu avô era o braço direito da estranha figura do Nuno Fernandes Basto, que também era conhecido como "Barão", apesar do titulado ser o seu tio! - "Vivia de noite, pouco parava em casa e estava sempre a viajar", dizia o meu avô, que o tinha de acompanhar para todo o lado. Quando estava no mosteiro arranjava sempre desculpas para ir à cozinha espreitar aquela que não lhe saía da cabeça, a sua Glória.

Despesa do casamento dos meus avós apontada
no livro de contas do meu avô Avelino.
Um dia, Avelino encheu-se de coragem e pediu Glória em casamento. Ela, rendida de amores por ele, aceitou!

O casamento foi "abençoado" pelo "Barão" que impressionado pela robustez das formas da minha avó, murmurou ao ouvido do seu fiel feitor, com um ar muito machista - "Bem escolhida Avelino! Uma mulher para ser boa, o homem deve dar dois tombos em cima dela e não cair abaixo...!"

A 19 de Março de 1938, Glória e Avelino casaram na igreja do Mosteiro de São Miguel de Refojos de Basto.

Casamento feito, nova vida... Avelino e Glória despediram-se do excêntrico "Barão" e foram morar para Atei. Compraram a casa que havia sido do avô materno de Avelino, no lugar de Fontelas e dedicaram-se a novas profissões. A minha avó como dona de casa e mãe de família e o meu avô à arte da carpintaria, que tinha atravessado gerações e gerações de Gonçalves...

Fotografia tirada no dia de casamento dos meus avós. Ao centro,  os
meus bisavós Adriano e Julinha, ladeados pela esquerda pela minha
tia-avó Amélia e pela direita, a minha avó Glória. O meu avô não
quis aparecer na fotografia do seu casamento porque estava doente!
Cabeceiras de Basto, 19 de Março de 1938.

Vieram os filhos, 6 ao todo... O meu tio António, a tia Laurinda, que morreu em criança, o meu pai Joaquim, a tia Fátima, o tio Albino e a tia Amélia.
A minha avó com a minha tia Fátima ao colo, o  meu
pai, do lado esquerdo, e pelo meu tio António, do lado direito.
1950.

Todos nasceram ao som do "tic-tac" do relógio, não o dos toques "Avé-Maria" das minhas recordações, mas de outro muito mais antigo, herança dos meus tios-trisavós, Bento e Carolina, da Casa do Paço, em Atei.

É engraçado como simples objetos que atravessam gerações e gerações nos marcam! Ao meu pai, o antigo relógio do Paço, que o viu nascer e crescer, no grande quarto chamado de "casa de lá", e a mim o relógio da sala, que "cantava" fortemente o "Avé-Maria" ao meio dia em ponto nos saudosos almoços de domingo.


Os meus avós, pai e tios. Anos 50.
Os meus avós e tios. Início dos anos 60.

Os meus avós. Porto, 10 de junho de 1989.
No dia 5 de Março de 1992 morre o meu avô Avelino. A minha avó vê-se sozinha, perdida, sem o amor da sua vida, que a acompanhou durante 54 anos de casamento. São poucos os casamentos que resistem tanto tempo... Glória nunca mais foi a mesma! Guardo até esta altura as melhores recordações dela, o seu sorriso, as suas palavras sábias...

A minha avó, à semelhança da sua mãe Julinha, foi-se esquecendo lentamente de tudo, do marido, dos filhos, dos netos, das boas lembranças e recordações guardadas ao longo da vida. 

Na madrugada chuvosa de 7 de dezembro de 2000, enquanto dormia, a minha avó Glória morreu.

Na sua casa já não se ouvem os "tic-tacs", apenas um insuportável SILÊNCIO...! Ficam as memórias sonoras dos relógios que marcaram várias gerações, eu, o meu pai, os meus tios e quem sabe a minha avó...

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