Os Mortos de Sobrecasaca

"Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis, alto de muitos metros e velho de infinitos minutos, em que todos se debruçavam na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca. Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos. Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava, que rebentava daquelas páginas."

Carlos Drummond de Andrade, Os Mortos de Sobrecasaca (Sentimento do mundo, 1940)

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

"Five o'clock tea" - Um chá com amizade e bons annos

Numa pela madrugada escura e húmida, sem sono o Castro resolve fazer um chá.  Não às 5 da tarde, mas às 5 da manhã. Estranho, não? Sem sono e tomar chá, um excitante, mas o Castro é assim, gosta de ser original e contrariar o óbvio.
Fotografia Isabel Florentino.
Chávena de chá Isabelina, cujo nome deriva de Isabel II de Espanha que em pleno séc. XIX introduz o hábito de oferecer chávenas com dizeres remetendo para sentimentos ou desejos.
Rainha Isabel II de Espanha.
D. Catarina de Bragança,
Casa-Museu Medeiros e Almeida.
Numa chávena de chá dizendo "Amizade" cai a famosa bebida quente e escura, introduzida por D. Catarina de Bragança, filha de D. João IV e D. Luísa de Gusmão que casou com o rei inglês Carlos II em 1661 e como requintada Senhora, não fosse ela portuguesa resolve introduzir o costume do "five o'clock tea" na aborrecida sociedade inglesa. Só ficaram a ganhar! Mais quentinhos naquela clima frio e húmido tomando chá naquele recipiente já muito antigo, a chávena (do malaio chavan ou do chinês Cha-Kvan) que se espalhou pela sociedade ocidental através de uma portuguesa, rainha consorte de Inglaterra.
O Castro com dias...
Naquele chá a ferver, o Castro sobra para este arrefecer, pois detesta coisas muito quentes e refletido na bebida vê e recua ao passado, ao seu passado, às suas memórias... Recuando, recuando, recuando, lembra-se de percorrer um longo e antigo corredor num triciclo cujos seus pés sempre andaram no chão, com poucos brinquedos, velhos, vindos ou oferecidos de outros. Durante anos nunca teve nada verdadeiramente seu ou cujo sentimento ou desejo tenha sido o de oferecer a si!
A "Amizade" dos outros, não era para ele, pois amigos gostam de oferecer, dar, sem nada em troca, apenas o ato de agradar ou mimar o outro.
E o Castro lá foi arrastando o triciclo pelo longo corredor durante mais uns anos, até já não caber nele... As memórias são tramadas, ficam e marcam a vida mesmo sem que nos apercebamos!
O Castro com a irmã.
Cresceu, brincou, a maior parte do tempo sozinho, gostava de construir casas, carros com molas da roupa... E lá se entretinha caladinho sem chatear ninguém. Deve ser daí o constante desejo de sempre construir algo, faz e desfaz, constrói e destrói, sempre na busca da perfeição.
Mas voltando atrás, como sempre, recuando, mas desta vez no texto, as "coisas", os bens materiais independentemente do valor passaram a ser inconscientemente importantes, uma ambição, não uma ambição de TER, do PODER, mas uma ambição de ter apenas aquilo que nunca teve e desejava.
Assistência do Hipódromo de Belém. Lisboa.
Fotografia de Joshua Benoliel, 1909.
O Rei D. Manuel II cumprimentando a mais fina sociedade lisboeta,
 no Hipódromo de Belém.
Fotografia de Joshua Benoliel, 1909.
Com a idade surgem os gostos, os interesses e claro que o Castro associou-os aos bens materiais. Gostava de História, lia sem parar os livros da escola da sua irmã mais velha, absorvia tudo o que era Passado, gostava de perceber, de entender e claro a imaginação fazia-o recuar no tempo e "viver" as diferentes épocas. Não todas, algumas eram chatas! Interessantes eram as múmias, as pirâmides, o livro dos mortos, os tesouros, tudo isso o fascinava, tal como fascinou a mais fina sociedade do séc. XIX. Aliás como o Castro gostaria de ter vivido nos anos de 1800, e viveu... No pensamento e também no local onde a mais fina sociedade lisboeta do séc. XIX e início do XX passava o seu tempo de "rien faire". Aquele longo corredor tinha memória! Uma memória de 1890, altura em que a casa onde nasceu foi construída e que "viu" as corridas de Ascot à portuguesa. Refiro-me ao Hipódromo de Belém, que existiu nas traseiras da sua casa e fez as delicias das senhoras de requintados chapéus, tez pálida, sempre protegida pelas sombrinhas e os senhores de chapéu de coco ou cartola, que entre todos eles murmuravam a vida alheia, um pouco como hoje, sempre à espera de ver quem chegava e era o mais importante, naquela altura o rei e tentar se destacar. Como o tempo não muda!
Equipa da antiga Direcção-Geral dos Edifícios
e Monumentos Nacionais - DGEMN, onde
o Castro trabalhou e foi feliz, muito feliz.
Forte de Sacavém.
Mas passa, passou para a casa do longo corredor, que felizmente ainda existe, para o hipódromo que infelizmente foi destruído e para o Castro que lá seguiu os seus gostos e interesses pela vida profissional. A memória das coisas, dos objetos, das casas, das igrejas EXISTE! Pelo menos é assim que o Castro sempre pensou.
Bons tempos, BONS ANOS, felizes a fazer o que gostava, fazer o que mais lhe dava prazer, viver o Passado, dar-lhe a importância que a maioria recusa ou ignora. Pena, muita pena! Triste aquele que não tem memória, triste o país que não tem História!
Chávena de chá Isabelina com o dizer "Bons annos".
Realmente o passado explica sempre o presente, recuando mais uma vez, também no texto, deve ser por isso que o Castro sempre quis e "ambicionou" ter, desta vez não brinquedos, mas objetos antigos, com história, com memória. Tudo isso o fascina, ter, ver, admirar e imaginar o que aqueles objectos, sejam obras de arte, sejam simples objetos do longínquo quotidiano "viveram", "viram"... Sim, porque a matéria, os bens, também têm olhos, só que não os vemos, estão escondidos por baixo de requintados dourados, flores, formas finas e reboscadas tal como as chávenas Isabelinas dos dizeres!
Visita às minas de volfrâmio de Cerva, em Ribeira de Pena
que deram uma estória para este blogue.
E a história continua, a vida do Castro continuou, mais uma vez fez aquilo que gostava, escrever, investigar, saber o passado, preservar a memória através deste blogue que deu o nome "O Castro Manco", dedicado ao seu trisavô manco, brasileiro torna viagem, à sua bisavô, cuja história de amor podia ter sido escrita por Camilo Castelo Branco e pelas famílias da sua querida terra do coração, as Terras de Basto, Mondim, Celorico, Cabeceiras, todos com Basto (e não Bastos!) no final e Ribeira de Pena. "Bons annos", umas vezes sozinho a ver, investigar, outras vezes acompanhado, divertindo-se, rindo e comovendo-se por vezes com as duras vidas de pessoas que já cá não estão mas deixaram a sua pegada, pelo que fizeram, pelas gerações que vieram e pelas fotos que preservam os rostos, os trajes, as tradições, o que tudo era e acabou.

Faz 3 anos que não escrevo! Perdi a inspiração, talvez... Mas hoje voltou, mas será a última do blogue "O Castro Manco", a que mais me diz, a estória ou história do Castro, ou seja, EU.
Devia isto a que sempre me seguiu, a quem sempre leu e elogiou o que eu escrevi sobre as pessoas de Basto, devia isto, um FINAL

E o chá acabou, já morno, com o açúcar no fundo da chávena Isabelina. Afinal o sono voltou.

Até breve, num outro blogue, num artigo ou quem sabe um dia num livro, sempre com a vontade que o tempo não apague as memórias do Passado...
Chávena isabelina com o dizer "Bôas festas".