Os Mortos de Sobrecasaca

"Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis, alto de muitos metros e velho de infinitos minutos, em que todos se debruçavam na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca. Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos. Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava, que rebentava daquelas páginas."

Carlos Drummond de Andrade, Os Mortos de Sobrecasaca (Sentimento do mundo, 1940)

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Quem com coxo anda aprende a mancar - A moda das viagens no raiar do século passado

Passeio a Vila do Conde, 1907. Em primeiro plano, a tia D. Ana,
atrás, ao centro, o meu trisavô Joaquim José, o "Manco"
e o seu irmão o tio José Joaquim, e nos extremos, os filhos da tia D. Ana.
Viagens no início do século XX... É esta a temática destas fotografias de família que eu encontrei perdidas "no fundo do baú". Quando as vi foi como voltar a dar vida a memórias há muito perdidas no tempo.

Ninguém da família, nem mesmo os mais velhos, se lembram de alguma vez ouvirem falar em viagens, passeios, no puro lazer e recreio dos seus vetustos pais e avós. Talvez antigamente não se falasse do passado, pelos menos do quotidiano, do que era considerado mais corriqueiro, não sei!

Estas fotografias ainda hoje são uma surpresa quando as mostro aos familiares mais velhos, que estranhamente lhe é difícil entender esta realidade da "arte de passear e não fazer nada" associada aos seus avós. Talvez seja porque estas pessoas, ao contrários destes seus antepassados nascidos no séc. XIX, viveram na sua juventude outra realidade, mais fechada, mais austera, própria dos 40 anos de "isolamento" que caracterizou o Estado Novo, acentuada pelo "ruralismo" do local onde viviam.

No precioso "baú" encontrei algumas fotografias destes esquecidos passeios do meu trisavô Joaquim José, conhecido como o "Manco"! Destacam-se estas de uma viagem a Vila do Conde em 1907, possivelmente por ocasião de alguma festa ou romaria.

Passeio a Vila do Conde, 1907. Do lado esquerdo, a tia D. Ana, o meu trisavô Joaquim José, o "Manco",
 um filho da tia D. Ana, os tios Francisco José (?) e José Joaquim, irmãos do "Manco" e outro filho da tia D. Ana.

Passeio a Vila do Conde, 1907. Junto à Igreja Matriz encontram-se,
do lado esquerdo, um filho da tia D. Ana, o tio José Joaquim,
outro filho da tia D. Ana, o meu trisavô Joaquim José e a tia D. Ana.
Mas, será que eram frequentes estas viagens? Infelizmente não tenho a certeza se o eram para o "Manco" e a sua família, pois as provas fotográficas que nos chegaram são manifestamente insuficientes. O que é certo é que estes passeios, estas viagens de recreio eram uma moda em ascensão na Europa, e como não podia deixar de ser, em Portugal.

O meu trisavô "Manco", pessoa letrada e certamente culta, cedo tomou contato com a realidade cosmopolita da cidade do Rio de Janeiro, ao emigrar no vapor para o Brasil. Lá fez fortuna, e como qualquer outro "novo rico" ou recém chegado à classe burguesa e capitalista, procurou certamente imitar tudo o que era moda ou ter o melhor, o mais caro, o mais extravagante... Enfim, nada que um "torna-viagem" ou "brasileiro" que se prezasse não fizesse para se mostrar à sociedade!

Viajar foi possivelmente uma dessas suas "extravagâncias", pelo menos assim seria vista pelos seus conterrâneos em Cabeceiras de Basto. Como prova desta sua mobilidade lúdica eis que nos aparece esta fotografia de uma viagem à Alemanha!

Berlim, 5 de Julho de 1912.
Marcados ao centro, do lado direito, o meu trisavô Joaquim José e a sua filha Balbininha, e do lado esquerdo, o seu filho Chiquinho.

Esta fotografia com um "estranho" transporte público, possivelmente o autocarro da altura, foi impressa como postal e mandada para a família, em Cabeceiras de Basto, no ano de 1912, pouco tempo depois do trágico acidente com o lendário navio Titanic. Infelizmente só se consegue ler no verso a data e "Chegamos ontem a Berlim...". Nada sei sobre esta viagem! Seria uma viagem pela Europa ou só pela Alemanha?

Estas viagens seriam frequentes na época, pelo menos para quem as podia pagar. Faziam-se normalmente nos navios a vapor ou no mais promissor transporte público deste meados do séc. XIX, o caminho-de-ferro!

Anúncios sobre vilas e cidades, termas, praias, touradas, exposições, romarias... em Portugal e no estrangeiro, tudo valia para promover o "Turismo", novo conceito vindo de Inglaterra no final do séc. XIX, através das viagens de comboio.

Havia já na altura uns livrinhos de bolso, verdadeiros guias turísticos, com todas as informações que o viajante precisava, nomeadamente locais históricos, hotéis, transportes, preços... Será que o "Manco" teria um? A sua filha Balbininha devia ter, pelo menos é o parece revelar esta fantástica fotografia, ao olharmos com mais atenção para a sua mão.

É estranho vermos estas imagens do passado, principalmente esta de 1912, tirada antes das duas grandes guerras mundiais, quase em "vésperas" do início do primeiro grande conflito militar, em 1914, onde tudo já desapareceu, as pessoas, o transporte, e até possivelmente o edifício!

Remexer em "baús" tem destas coisas, podemos encontrar verdadeiras janelas para o passado. Estas que aqui vemos não existiriam certamente se não fossem as modas dos retratos fotográficos, das viagens e passeios... enfim, das "extravagâncias" do "Manco".