Os Mortos de Sobrecasaca

"Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis, alto de muitos metros e velho de infinitos minutos, em que todos se debruçavam na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca. Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos. Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava, que rebentava daquelas páginas."

Carlos Drummond de Andrade, Os Mortos de Sobrecasaca (Sentimento do mundo, 1940)

O "MANCO"

Era esta a alcunha do meu trisavô, de seu nome Joaquim José da Silva Castro, que segundo dizem, possuía uma ferida crónica que o levava a arrastar a perna e a mancar, daí o nome que se estendeu à sua casa e às gerações vindouras!

Nascido no pequeno e recôndito lugar de Baloutas, em Painzela, Cabeceiras de Basto, em meados do século XIX, e filho de João Baptista da Silva e Teresa d'Araújo, pequenos proprietários rurais, pertencia a uma longa linhagem da família dos Castro de Painzela, cujo pai apesar de ter perdido o apelido, quis recuperá-lo para os seus filhos, indo buscá-lo à sua mãe Theresa Joaquina de Castro.

Segundo filho de quatro, dois irmãos e uma irmã, teve o destino de tantos portugueses que emigraram no vapor para o promissor e longínquo Brasil, no último quartel do século XIX. E segundo consta nas memórias dos mais velhos, fez fortuna, possivelmente como negociante no Rio de Janeiro, tal como aconteceu com os seus dois irmãos. "O meu avô era brasileiro", pelo menos era isto que a minha avó dizia! E como "brasileiro" ou "torna-viagem" voltou à sua terra e casou com uma mulher ainda mais rica do que ele. Joaquina d'Oliveira Araújo era o seu nome, nascida também em Baloutas e filha única de José António de Oliveira Araújo e Maria d'Araújo, grandes proprietários rurais do lugar. 

Certificado da Misericórdia de São Miguel
de Refojos, de Cabeceiras de Basto, atribuído
ao irmão Joaquim José da Silva Castro,
a 4 de agosto de 1902.
Joaquim José teve uma vida abastada e bastante confortável, com uma vasta prole de nove filhos. A tia Aninhas, a mais velha, seguida da minha bisavó Julinha, os tios Zézinho, Chiquinho e Amériquinho e as tias Teresinha, Balbininha, Mariquinhas e Olainha. Todos "inhos" como é costume chamar aos filhos das famílias ricas no Minho. Dos nove filhos, dois morreram novos, o tio Zézinho ainda criança, e a tia Teresinha de parto, um ano após ter casado, na véspera da implantação da República, em 1910. 

A minha trisavó não teve uma vida longa, morrendo no início do século XX com quarenta e poucos anos. A sua morte é um mistério, terá sido de parto, doença? Ninguém sabe! O então viúvo Joaquim José ficou assim com uma vasta prole, órfã de mãe, a seu cargo, recorrendo então à sua irmã Antónia para ajudar a para criar os seus filhos.

À medida que os filhos foram crescendo, foram casando e deixando a "Casa do Manco" vazia, ficando apenas os filhos Chiquinho e Olainha.

Primeira edição do único exemplar que resta da coleção de
livros de Camilo Castelo Branco que pertencia ao "Manco".
A coleção foi queimada pela devota tia Sofia, nora de Joaquim
José, após o padre da aldeia ter dito no sermão de domingo que
as obras de Camilo eram uma heresia.
Joaquim José, morreu a 26 de junho de 1923. Deixou a sua casa ao seu filho Francisco ou "Chiquinho", que havia casado e tomado conta do seu pai nos últimos anos da sua vida.

É esta a história do meu trisavó, de cognome "O Manco", cujo rosto eu tanto quis encontrar em fotografias perdidas, que apenas viram a luz do dia quando as encontrei num álbum de um primo já afastado. Apesar de nunca o ter visto e já não haver ninguém vivo que o tivesse conhecido, o seu rosto, o seu olhar é  me estranhamente familiar...
Berlim, 5 de Julho de 1912.
Do lado direito, Joaquim José e a sua filha Balbininha e do lado esquerdo, o seu filho Chiquinho.

3 comentários:

  1. No dia em que vc resolver transformar sua história em LIVRO...não se esqueça de mim!!! Quero MUITO um exemplar!

    ResponderEliminar
  2. Está combinado! Vamos torcer para que se torne uma realidade não muito distante!

    ResponderEliminar