Os Mortos de Sobrecasaca

"Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis, alto de muitos metros e velho de infinitos minutos, em que todos se debruçavam na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca. Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos. Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava, que rebentava daquelas páginas."

Carlos Drummond de Andrade, Os Mortos de Sobrecasaca (Sentimento do mundo, 1940)

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Um Amor de Perdição

Julinha em criança, 1893.
Qualquer semelhança com alguns episódios do enredo do romance de Camilo Castelo Branco é mera coincidência. Mas o que é certo é que a vida da minha bisavô Julinha poderia ter sido uma inspiração para o Camilo, o Eça de Queirós ou qualquer outro escritor Romântico do séc. XIX.

Foi no longínquo ano de 1886, na fria madrugada do dia 26 de janeiro, que nasceu Júlia da Silva Castro, no pequeno lugar de Baloutas, da freguesia de Painzela, em Cabeceiras de Basto. Julinha, como ficou conhecida, pois era habitual no Minho usar o diminutivo "inha" para as meninas ricas, nasceu no seio de uma família rural abastada, cuja fortuna teria vindo principalmente da herança em propriedades de sua mãe Joaquina e dos negócios no Brasil, de seu pai Joaquim José, conhecido como "O Manco".

Como qualquer menina prendada no final do séc. XIX no "Portugal rural" foi educada segundo os valores cristãos e familiares, ensinada a cuidar da casa, do marido e filhos, a ser submissa e a não ter grandes opiniões nem vontades, tal como era comum naquele mundo dominado pela vontade masculina.

No entanto, apesar de tantas grilhetas sociais, talvez devido à origem "menos rica" da família de seu pai, Julinha cresceu "livre", livre para correr descalça com os outros miúdos da aldeia, para correr pelos campos no meios dos criados e jornaleiros atarefados com as pesadas tarefas agrícolas, livre para brincar com os seus primos e irmãos...

As vindimas em Baloutas, 1893. Fotografia tirada na casa de seu tio paterno José. Em primeira fila, ao centro, Julinha com a sua avó paterna Teresa de Jesus, sua irmã Aninhas, sua mãe Joaquina e seu avô paterno João Baptista da Silva. Atrás seus tios paternos, Antónia (?), José, D. Ana, primos e vindimadores.

No início do séc. XX, possivelmente ainda em 1902, a felicidade própria da infância é roubada pela morte precoce de sua mãe Joaquina, deixando 8 filhos menores. Julinha teria apenas 16, a irmã mais velha, Aninhas, com 19 e os restantes irmãos ainda crianças. A minha bisavó teve assim de "crescer" mais depressa e como era das irmãs mais velhas, quase adulta, teria de ajudar a tomar conta dos seus irmãos, apesar do acompanhamento de suas tias D. Ana e Antónia.

No meio do reboliço das tarefas domésticas de uma menina de família que teria de tomar conta de seus irmãos, não havendo talvez  "ninguém" para tomar conta de si e como é próprio da flor da idade, o seu olhar cruzou-se com um jovem criado de seu pai, jornaleiro de profissão, se é que se pode chamar "profissão" a uma vida tão incerta de duro trabalho  à "jorna" ou ao dia na lavoura!

Adriano Augusto José Machado era o nome desta sua súbita e grande paixão, que viria a tornar-se o meu bisavô. Nascido a 1 de junho de 1885, na freguesia de Refojos, no centro da vila de Cabeceiras de Basto, no seio de uma família muito humilde, era filho de Bernardo José Machado e Maria Inácia Alves. A sua família tinha uma alcunha, digamos, curiosa, eram conhecidos como os "cag..." acabado em "ões", devido a uma história passada com o pai ou com o avô de Adriano. Este seu antepassado, por ocasião das lavragens, e como jornaleiro, teria ficado hospedado numa casa que lhe era estranha. Durante a noite arrebatado por uma súbita dor de barriga e não podendo ir à latrina no exterior da casa, porque teria de passar pelos quartos intercomunicantes onde estavam a dormir os donos da casa, acordando-os, desenrascou-se colocando o dito cujo fora da janela do seu quarto. Por baixo estava o arado que iria ser usado no dia seguinte! De manhã quando os outros trabalhadores o foram usar... Já se advinha a reação e o porquê da malfadada alcunha!

O secreto namoro de Julinha com Adriano depressa foi descoberto pelo "Manco". E, claro está, proibiu terminantemente esta paixão de sua filha, menina rica e prendada com o criado pobre e ainda por cima com uma alcunha tão imprópria para ser apresentada na sociedade cabeceirense.

Mas, como o fruto proibido é sempre o mais apetecido, Julinha não cumpriu e engravidou...

Coberto de vergonha e como era hábito na altura fazer tudo "por debaixo dos panos", e antes que a sua barriga começasse a crescer e a notar-se, o "Manco" mandou a sua filha para a casa de seu irmão José Joaquim. A casa ficava no Porto, longe o suficiente para esconder a gravidez dos olhares reprovadores da sociedade, e tinha sido alugada pelos tios de Julinha, José Joaquim e D. Ana para que o filho Baltazar, futuro arquiteto, pudesse estudar.

Adriano descobriu a morada da tal casa no Porto e meteu os pés ao caminho para ir buscar a sua amada. - "Julinha, Julinha..." gritava ele por debaixo da sacada da casa quando a encontrou! A boa e benevolente tia D. Ana foi rapidamente à janela, e antes que os vizinhos dessem conta de tamanha "ribaldaria", acalmou os ânimos e pediu a Adriano que voltasse a Cabeceiras e resolvesse a situação quando Julinha regressasse, para que D. Ana não tivesse de prestar contas ao enfurecido cunhado "Manco". E assim foi...

Escondida dos olhares reprovadores, meses depois, Julinha deu à luz um menino! Mas, mal o viu! O "Manco" havia dado ordens para que a criança fosse retirada à mãe e entregue a uma ama, que o criaria em absoluto sigilo.

Tolhida de medo de seu pai e das línguas viperinas da sociedade, Julinha regressou sozinha, na esperança da sua vida poder resolver-se e quem sabe poder acompanhar o filho, nem que fosse em segredo.

Contudo, ao chegar a Baloutas, tudo veio-lhe à memória e a sua paixão foi maior do que o medo de reprovação de seu pai. Julinha havia-se encontrado com o seu amado e antigo criado de lavoura e feito juras de amor eterno.

Quanto fez 21 anos e atingiu a maioridade, já com tudo pensado e combinado com Adriano, Julinha arranjou maneira de fugir...
Adriano e Julinha, 1957.
(fotografia oferecida por eles a todos os seus filhos). 

Escondendo a garrafa do vinho que devia estar na mesa do jantar, Julinha, muito solicita, disse ao pai de cara aborrecida que procurava na mesa e no aparador da sala a desejada garrafa - "Pai, vou ali à adega buscar o vinho e já venho!". Foram as últimas palavras que o "Manco" ouviu de sua boca. Julinha foi e não voltou. Ou pelo menos não nos dias seguintes!

No dia 24 de novembro de 1907, Julinha e Adriano casaram na igreja do Mosteiro de São Miguel de Refojos, em Cabeceiras de Basto.

O "Manco" enfurecido com a pesada notícia mandou buscar o seu neto a casa da secreta ama e entregou-o nos braços da sua filha recém casada e inexperiente mãe. Julinha havia sido, a partir daquele momento, renegada pelo seu desgostoso pai!
Julinha e Adriano com as netas Adelaide e Conceição.

Os meus bisavós, ironicamente, foram morar para a casa em frente à Casa do Manco. "Casa", não era o termo mais correto para aquelas quatro paredes, antigas dependências agrícolas da Casa do Manco, que Julinha havia herdado nas partilhas de sua mãe. Foi adaptada a casa! Fizeram-se os quartos com divisões de tabique, soalho corrido, latrina no exterior, cozinha com chão em terra, forno e... atrás dele o lagar e a adega! Tudo numa construção só! A adega e o lagar eram precisos para as pipas de vinho americano que era colhido na propriedade, também herdada de sua mãe, de seu nome "Veiga". A partir daquele momento e para sempre a minha bisavó ao nome "inha" foi acrescentado "da Veiga"... "Julinha da Veiga".

Adriano e Julinha, anos 60.
O filho, fruto da relação proibida, morreu ainda bebé, ninguém sabe de quê, talvez levado por uma das inúmeras doenças infantis que assolavam o início do século. Mas vieram mais filhos, todos criados naquela pequena casa, com vista para a rica Casa do Manco. Julinha teve mais 9, tal como sua mãe: a tia América, a mais velha, seguida da minha avó Glória, a tia Maria,  o tio Agostinho, a tia Joaquina, a tia Amélia, o tio Joaquim, a tia Cândida e o tio José.
A minha avó,  Maria da Glória da Silva Castro, 1950. 

Apesar do "Manco" nunca ter aceitado o casamento da sua filha e o elo entre eles ter-se tornado demasiado frio e distante, os netos não foram incluídos nessa gélida e conturbada relação. Ainda hoje se fala das brincadeiras entre o "Manco" e as netas mais velhas. Segundo consta, a tia América, a minha avó Glória e as primas gostavam de apanhá-lo distraído, a dormitar e esconder-lhe a bengala...

Julinha e Adriano ficaram juntos até que a morte os separasse. Acho que a paixão da minha bisavó pelo meu bisavô era tão grande que lhe deu força para superar todas as adversidades que atravessou...

Nos últimos anos de vida a loucura e a demência tomaram conta dos pensamentos da minha bisavó. Delírios, visões, vozes imaginárias, tudo isto a atormentava! - "Não vás lá dentro! Estão lá pessoas que me querem matar..." dizia ela aos netos que vinham a casa visitá-la.

No dia 22 de fevereiro de 1966, pelas 16 horas, Julinha de 80 anos morre no lugar da Cruz do Muro, na casa de seu filho.

No velório de Julinha alguém disse a Adriano - "Ela sofreu tanto, era tão boa, uma verdadeira santa... merece o Céu!", ao que Adriano respondeu - "Se o merece, deve-o a mim, que fui a causa do seu Purgatório e a Perdição da sua vida...".


Os meus tios-avós:

A tia América.
A tia Maria.
A tia Joaquina.



O tio Joaquim.
A tia Amélia.
A tia Cândida .
Ver:Jornal Ecos de Basto
O tio José.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

O "Manco"

Joaquim José da Silva Castro, 1907.
Era esta a alcunha do meu trisavô, de seu nome Joaquim José da Silva Castro, que segundo dizem, possuía uma ferida crónica que o levava a arrastar a perna e a mancar, daí o nome que se estendeu à sua casa e às gerações vindouras!

Nascido no pequeno e recôndito lugar de Baloutas, em Painzela, Cabeceiras de Basto, em meados do século XIX, e filho de João Baptista da Silva e Teresa d'Araújo, pequenos proprietários rurais, pertencia a uma longa linhagem da família dos Castro de Painzela, cujo pai apesar de ter perdido o apelido, quis recuperá-lo para os seus filhos, indo buscá-lo à sua mãe Theresa Joaquina de Castro.

Segundo filho de quatro, dois irmãos e uma irmã, teve o destino de tantos portugueses que emigraram no vapor para o promissor e longínquo Brasil, no último quartel do século XIX. E segundo consta nas memórias dos mais velhos, fez fortuna, possivelmente como negociante no Rio de Janeiro, tal como aconteceu com os seus dois irmãos. "O meu avô era brasileiro", pelo menos era isto que a minha avó dizia! E como "brasileiro" ou "torna-viagem" voltou à sua terra e casou com uma mulher ainda mais rica do que ele. Joaquina d'Oliveira Araújo era o seu nome, nascida também em Baloutas e filha única de José António de Oliveira Araújo e Maria d'Araújo, grandes proprietários rurais do lugar. 

Certificado da Misericórdia de São Miguel
de Refojos, de Cabeceiras de Basto, atribuído
ao irmão Joaquim José da Silva Castro,
a 4 de agosto de 1902.
Joaquim José teve uma vida abastada e bastante confortável, com uma vasta prole de nove filhos. A tia Aninhas, a mais velha, seguida da minha bisavó Julinha, os tios Zézinho, Chiquinho e Amériquinho e as tias Teresinha, Balbininha, Mariquinhas e Olainha. Todos "inhos" como é costume chamar aos filhos das famílias ricas no Minho. Dos nove filhos, dois morreram novos, o tio Zézinho ainda criança, e a tia Teresinha de parto, um ano após ter casado, na véspera da implantação da República, em 1910. 

A minha trisavó não teve uma vida longa, morrendo no início do século XX com quarenta e poucos anos. A sua morte é um mistério, terá sido de parto, doença? Ninguém sabe! O então viúvo Joaquim José ficou assim com uma vasta prole, órfã de mãe, a seu cargo, recorrendo então à sua irmã Antónia para ajudar a para criar os seus filhos.

À medida que os filhos foram crescendo, foram casando e deixando a "Casa do Manco" vazia, ficando apenas os filhos Chiquinho e Olainha.

Primeira edição do único exemplar que resta da coleção de
livros de Camilo Castelo Branco que pertencia ao "Manco".
A coleção foi queimada pela devota tia Sofia, nora de Joaquim
José, após o padre da aldeia ter dito no sermão de domingo que
as obras de Camilo eram uma heresia.
Joaquim José, morreu a 26 de junho de 1923. Deixou a sua casa ao seu filho Francisco ou "Chiquinho", que havia casado e tomado conta do seu pai nos últimos anos da sua vida.

É esta a história do meu trisavó, de cognome "O Manco", cujo rosto eu tanto quis encontrar em fotografias perdidas, que apenas viram a luz do dia quando as encontrei num álbum de um primo já afastado. Apesar de nunca o ter visto e já não haver ninguém vivo que o tivesse conhecido, o seu rosto, o seu olhar é  me estranhamente familiar...
Berlim, 5 de Julho de 1912.
Do lado direito, Joaquim José e a sua filha Balbininha e do lado esquerdo, o seu filho Chiquinho.