Os Mortos de Sobrecasaca

"Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis, alto de muitos metros e velho de infinitos minutos, em que todos se debruçavam na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca. Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos. Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava, que rebentava daquelas páginas."

Carlos Drummond de Andrade, Os Mortos de Sobrecasaca (Sentimento do mundo, 1940)

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

"SE O PEREIRA CÁ ESTIVESSE..." - O "Sir" de Atei que podia ter mudado a História de Portugal!


Sons... Os rodados de um landau, os cascos dos cavalos sobre a calçada, vozes, muitas vozes, muito ruído de fundo e de repente... Pum! Um estrondo, o som de um tiro abafado pelo ruído de fundo e nada... Ninguém se apercebeu do tiro! Aquele estrondo marcava o inicio da "batida às feras", começava a "caça"... No dia 1 de fevereiro de 1908, quando regressavam de uma estadia em Vila Viçosa, foram abatidos a tiro o rei D. Carlos I e o seu filho herdeiro do trono, o Príncipe Real D. Luís Filipe. Estes breves momentos, há 108 anos, do famoso regicídio marcaram profundamente a História de Portugal. Foi o início do fim de uma era... 
Desenho representando os momentos do regicídio. Capa do suplemento ilustrado "Le Petit Journal", 16 de fevereiro de 1908.
E se a história tivesse sido diferente? E se naquele fim de tarde frio no Terreiro do Paço não se tivesse ouvido nenhum tiro, não tivesse passado nenhum landau real, apenas as habituais carruagens que percorriam a velha Lisboa? Haveria alguém capaz de mudar a história? Talvez... Quem?
Manuel Augusto Pereira e Cunha.
Fotografia de Augusto Bobone - Pintor e Fotógrafo
das Casas Reais de Portugal e Espanha,
Séc. XX, início.
Fotografia gentilmente cedida pela sua sobrinha
D. Teresa Gil Pereira e Cunha.

Não vou, nem quero contar esta história, a história do regicídio! Já muita tinta se gastou para descrever o momento! Chegaram até aos nossos dias as descrições das testemunhas, incluindo a do próprio rei D. Manuel II, que estava no landau e também foi ferido num braço. O processo de investigação do caso estranhamente e convenientemente desapareceu... Ainda entregaram uma cópia ao próprio rei D. Manuel já no exílio em Inglaterra, mas quando este morreu, em 1932, o processo sumiu. Nada foi encontrado na sua casa de Fulwell Park!

Mas vou e quero contar a história de um homem das Terras de Basto, monárquico convicto, muito amigo da família real e que hipoteticamente poderia ter sido um ator decisivo numa mudança de cena, uma cena drasticamente diferente daquela tragédia! Chamava-se Manuel Augusto Pereira e Cunha.

A Casa de Barreiros, na freguesia de Atei, concelho de Mondim de Basto.
Esta Casa, uma das mais importantes casas agrícolas da região, ainda hoje
pertence à família Pereira e Cunha. Foi em meados do séc. XX profundamente
transformada com elementos arquitetónicos vindos de outras casas da região,
 incluindo a capela e a pedra de armas, que segundo Eduardo Teixeira Lopes,
terá vindo da Casa de Sub-Ripas de Vale do Bouro (LOPES, Eduardo Teixeira,
Mondim de Basto - Memórias Históricas, 2000).
Foi em 1855, no dia 15 de outubro que nasceu um menino, na Casa de Barreiros, em Atei, Mondim de Basto, no seio de uma família da pequena aristocracia rural. Manuel Augusto era filho de Joaquim António da Cunha e Silva e D. Ana Diniz Pereira. A linhagem da grande Casa de Barreiros viria do lado dos seus avós paternos, Manuel José da Cunha e Benta Alves Ferreira.

Tinha mais dois irmãos, Bento e Torcato, mas foi ele que herdou Barreiros. No entanto não ficou por muito tempo em Atei!
Assinatura de seu pai em documento de quitação de pagamento
datado de  31 de janeiro de 1876.
(nesta data, Joaquim António da Cunha e Silva já estava viúvo)
In Arquivo Distrital de Vila Real.

Menino rico, quando cresceu, em 1871 foi estudar para o liceu, em  Coimbra. E o excelente aluno ingressou na mais velha universidade portuguesa, a Universidade de Coimbra. Escolheu direito e apesar de ter sido convidado para dar aulas, no final da formatura, em 1877, não quis! Queria experimentar a política!

Claro que para isso não bastava ter dinheiro, era preciso ter influência, era preciso ter amigos de peso! Na faculdade já tinha alguns... O poeta António Cândido, o Conde de Monsaraz, D. Francisco de Vieira e Brito, futuro Bispo de Lamego...

A família real portuguesa. O rei D. Carlos I ladeado pela rainha D. Amélia e a
sua mãe, a rainha viúva D. Maria Pia. Em baixo, ao centro o seu irmão o infante
D. Afonso, ladeado pelo Príncipe Real D. Luís Filipe e o futuro rei D. Manuel II.
Como membro do Partido Regenerador foi eleito deputado pelo círculo de Cabeceiras de Basto, depois Administrador dos concelhos de Mondim de Basto e Vila Real e secretário dos Governos Civis da Horta e de Santarém. A 27 de janeiro de 1890 é convidado para Governador Civil de Faro, depois do Porto e finalmente de Lisboa no final do ano de 1901. Terá sido, possivelmente, nos 4 anos que se seguiram, altura em que ocupou este cargo que se terá aproximado mais da corte e da família real.

A amizade entre Manuel Augusto Pereira e Cunha e o seu rei era tão grande... Quase idolatração! A consideração que o rei tinha por ele era enorme. Tinha-o como um ótimo conselheiro e um verdadeiro amigo. Chamava-lhe o "Pereira"...

O rei D. Carlos e o irmão, o infante D. Afonso,
durante um torneio de florete
na Tapada da Ajuda, em Lisboa.
 Uma das raras fotografias em que o rei
 aparece a sorrir e numa pode descontraída,
 com o seu inseparável charuto na mão.
Fotografia de Joshua Benoliel, 1907.
Apesar de tudo, apesar da sua aproximação ao rei, nunca aceitou nenhum título. Penso que não queria ser mais um barão, mais um visconde... "Foge cão que te fazem...". Bem, talvez uma comenda não fizesse mal... Em 1903 o rei agracia-o com a Comenda e a Grã-Cruz da Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa e no ano seguinte com a Grã-Cruz da Ordem de Cristo.

Terço oferecido a Manuel
Augusto Pereira e Cunha
pelo Papa Pio X
(Pontificado 1903-1914)
O seu grande amigo, o ministro Hintze Ribeiro, chefe do partido Regenerador várias vezes o convidou para ministro, mas ele não quis... Já era Par do Reino, também foi secretário do Ministério do Interior, para quê mais honrarias? Era um homem simples, que nunca procurou fama. E realmente não a teve... Deve ter sido por isso que o tempo encarregou-se de o esquecer!

Em abril de 1903 o rei Eduardo VII de Inglaterra visita oficialmente Portugal.

Fotografia tirada após um almoço oferecido ao rei inglês, no Palácio da Pena. Ao centro, sentados, estão o rei D. Carlos e Eduardo VII. Cliché A. Novaes.
Recepção ao rei Eduardo VII, no Terreiro do Paço. Lisboa, abril de 1903.
D. Carlos mandou preparar uma enorme recepção para o seu primo inglês. E por ocasião desta visita Eduardo VII resolveu agraciar o então Governador Civil de Lisboa com o título de SIR e de Grande Oficial da Ordem do Nilo. O ilustre de Atei tornou-se assim em Sir Manuel Augusto Pereira e Cunha. Não quis ser um barão português e virou um Sir inglês!

A grande pirâmide e a esfinge em Gizé, Egito.
Fotografia do séc. XIX.
Um dia fartou-se da política! Deixou tudo... O seu país, a sua família, a sua querida Atei, a corte e os seus grandes amigos, o casal real D. Carlos e D. Amélia. Foi para o Egito! No dia 15 de dezembro de 1903 aceita o cargo de juiz do Tribunal de Mausourah. E ficou naquele país por mais de 20 anos. Aquela cultura antiga encantou-o! Aliás desde o séc. XIX que o Egito e toda aquela cultura ancestral estava na moda, a moda das viagens, das caças aos tesouros e relíquias, das grandes escavações arqueológicas, das múmias...

Bento da Cunha e Silva com a sua mulher
D. Maria Engrácia Machado e Moura e a filha mais
velha, D. Amélia Maria Machado e Cunha.
Séc. XX, anos 10.
Créditos fotográficos de GOMES, Joaquim da Silva,
Conselheiro Pereira e Cunha,
Jurista e Político 1855 - 1837, 2007.
Em Atei, a administrar os seus bens ficou o seu irmão, Bento da Cunha e Silva, casado com D. Maria Engrácia Machado e Moura, da Casa da Quinta da Dónega, também em Atei, e neta do também famoso e muito rico, o Conde de Alves Machado. Também ela foi uma ajuda essencial, habituada a gerir a casa e a tomar conta dos seus irmãos mais novos após a morte precoce de sua mãe, D. Amélia Alves Machado, filha do conde.

Postal ilustrado da Rua da Estação de Ramleh.
Alexandria, Egito, 1903.
A 22 de janeiro de 1907 parte para a cidade de Alexandria para ocupar o cargo de juiz do tribunal daquela cidade. E não, o Egito não era só pirâmides, templos, túmulos e areia! Alexandria era uma cidade muito cosmopolita, com arquitetura de feições europeias, talvez a mais ocidentalizada do Egito. Manuel Augusto Pereira e Cunha sentiu-se verdadeiramente em casa, naquela famosa cidade, fundada por Alexandre O Grande onde existiram duas das mais conhecidas maravilhas do mundo antigo, o Farol e a Biblioteca de Alexandria. Aliás alguns anos antes, em 1900, havia sido descoberta outra das sete maravilhas, as Catacumbas de Kom El Shoqafa.

Em 1908 dá-se o regicídio! Manuel Augusto Pereira e Cunha estava longe... A notícia caiu-lhe como uma bomba! Foi um enorme desgosto ver assim desaparecer o seu rei, o seu amigo, aquele que tanto admirava. Um duro golpe que o marcou profundamente. Quem lhe dera ter podido impedir de alguma forma aquela tragédia. Será que podia? Segundo palavras da própria rainha D. Amélia, SIM! Consta que a rainha terá dito uma frase que ficou para a posteridade...

 "Se o Pereira cá estivesse, não tínhamos feito esta viagem!".
O rei D. Manuel e a sua mãe, a rainha viúva D. Amélia,
rodeados pelos seus cães no Palácio da Pena.
Sintra, 1909.

Manuel Augusto Pereira e Cunha
In Ilustração nº 314, 10 janeiro 1939.
Segundo a rainha, e dada a perigosa conjuntura na época, pois alguns dias antes, a 28 de janeiro, já tinha havido uma tentativa de revolução, se o "Pereira" lá estivesse com eles em Vila Viçosa e porque era considerado uma pessoa sábia, sensata e muito ponderada, tinha aconselhado o rei a não vir para Lisboa naquele dia! Talvez devesse ter esperado um pouco, alguns dias, até a "poeira assentar"... O rei teria certamente ouvido e acatado o conselho do "Pereira"! E também a rainha, pois ela queria à força vir embora para Lisboa naquele fatídico dia. "Só se eu quebrar uma perna é que não volto para Lisboa no dia 1 de fevereiro!", disse ela ao filho D. Manuel, dias antes quando este voltou sozinho para a capital por causa dos estudos de preparação para a Escola Naval.

O que é certo é que Manuel Augusto Pereira e Cunha não estava lá, não os aconselhou e o atentado premeditado aconteceu. Nem o atraso provocado pelo descarrilamento que aconteceu na Casa Branca, com o comboio real que os trazia de Vila Viçosa impediu a tragédia!  Ou também faria parte do plano do atentado? O rei e o seu herdeiro morreram, subiu ao trono o filho mais novo D. Manuel e reinou apenas por mais dois anos. O fim anunciado de 800 anos de monarquia ficou escrito naquele dia!

Anel oferecido  pelos seus
colegas e amigos do Tribunal
de Alexandria quando se
veio embora para Portugal.
Manuel Augusto Pereira e Cunha, longe no Egito, recebe a notícia da proclamação da República a 5 de outubro de 1910, e a tristeza de saber que a família Real parte para o exílio rumo a Gibraltar. No entanto, vai mantendo o contato com eles através de correspondência trocada com a rainha D. Amélia.

Fica no Egito até 31 de janeiro de 1925, altura em que resolve abandonar o cargo de Presidente do Tribunal de Alexandria. Quis regressar à sua querida Atei e descansar. Naquelas terras do norte de África deixou muitas saudades... Foi um juiz tido como sábio e extremamente rigoroso. Diz-se que as suas sentenças nunca tiveram apelação!

Manuel Augusto Pereira e Cunha rodeado pelas mulheres da família na sua Casa de Barreiros, em Atei.
Fotografia gentilmente cedida pela sua sobrinha D. Teresa Gil Pereira e Cunha.
D. Maria Engrácia Machado e Moura com os filhos,
D. Ana Maria Machado e Cunha, Joaquim Machado
Pereira e Cunha e Amélia Maria Machado e Cunha.
Séc. XX,  final da década de 20.
Fotografia gentilmente cedida por D. Teresa Gil Pereira e Cunha,
filha de Joaquim Machado Pereira e Cunha.
De volta a Atei, à sua propriedade de Barreiros, vive os seus anos de velhice descansados, sem problemas de maior, apenas contemplando o melhor da natureza... O chilrear dos melros na primavera, o regresso do verde intenso que cobre a paisagem com a chegada dos primeiros dias quentes... Acompanha também de perto as atividades agrícolas nas suas propriedades, mas é ao seu sobrinho Joaquim Machado Pereira e Cunha, filho do seu irmão Bento, que resolve deixar em herança os seus bens, a sua amada Casa de Barreiros. Afinal Manuel Augusto Pereira e Cunha nunca havia casado nem tido herdeiros, pelo menos oficialmente! O seu sobrinho, futuramente conhecido como o "Morgado de Barreiros" assume na maioridade a gestão de todas as propriedades. E é este ramo da família que perdura no tempo na velha Casa de Barreiros. O "Morgado de Barreiros", também conhecido popularmente por "Pereira e Cunha" vem a casar com D. Maria José Sottomayor, da Casa do Reguengo, em Celorico de Basto. O casamento infelizmente foi curto e volta a casar em segundas núpcias com D. Maria Cacilda de Matos Gil, de uma família riquíssima de Santo Tirso. Chamavam-na  a "Senhora de Barreiros".
Manuel Augusto Pereira e Cunha (de guarda-chuva na mão) rodeado por proprietários e agricultores de Atei.
Séc. XX, década de 30.
Fotografia gentilmente cedida pela sua sobrinha D. Teresa Gil Pereira e Cunha.
Placa colocada nas arcadas do Terreiro do Paço, em Lisboa, no local
exato onde ocorreu o regicídio, por ocasião do seu centenário.

Sir Manuel Augusto Pereira e Cunha morre a 19 de janeiro de 1937 na Casa de Barreiros. Curiosamente o seu último desejo foi ser sepultado com os retratos dos seus queridos amigos, o rei D. Carlos e a rainha D. Amélia, na altura ainda viva. E "seja feita a vossa vontade"... Sobre o seu caixão foram colocados os retratos Reais. E lá permanecem, no jazigo do cemitério de Atei, sete palmos abaixo de terra, juntos para toda a eternidade.


Que saudades sentia ele do seu rei! Quem lhe dera ter impedido aquele desfecho terrível, aquela dor da sua rainha, a dor de uma mulher, de uma mãe, a dor de uma nação adormecida e apática! Mas não impediu, nem ele, nem ninguém! Infelizmente ninguém advinha o futuro, acho eu! Uma coisa é certa, ninguém volta atrás no tempo! Porque se voltasse uma simples ação, algumas simples palavras poderiam mudar radicalmente o futuro.

Fotografia gentilmente cedida
por D. Teresa Gil Pereira e Cunha.

Video  do Expresso Online "Viagem ao dia do regicídio", contado pela investigadora Margarida Magalhães Ramalho. In www.youtube.com



E SE O PEREIRA LÁ ESTIVESSE? E SE...



"Escrever: Escrever para não gritar: Para não perder a razão - sim, para não perder a razão. Para expulsar; por um instante que seja, as terríveis imagens deste dia, e suportar o longo horror desta noite, a primeira de todas as que estão para vir. Escrevo para mim. Escrevo para não enlouquecer..."

Palavras da rainha D. Amélia no "Diário de Dona Amélia de Orleães e Bragança" alusivo ao dia do Regicídio.






Agradecimento especial:
A D. Teresa Gil Pereira e Cunha, sobrinha-neta de Manuel Augusto Pereira e Cunha, que tão gentilmente se disponibilizou para ajudar.

Sem comentários:

Enviar um comentário