Retrato do Comendador Alfredo Pinto Coelho ainda jovem. Séc. XX, início. Fotografia gentilmente cedida pelo neto Alfredo Simões Pinto Coelho. |
"A ingratidão é o imposto cobrado à generosidade."
Carlos Drummond de Andrade
Esta frase de um conhecido poeta brasileiro é o mote para falar de um dos homens mais generosos do seu tempo por Terras de Basto e que o tempo se encarregou de esquecer ou não relembrar na proporção do seu altruísmo... O seu nome era Alfredo da Graça de Matos Pinto Coelho, também conhecido como Comendador Alfredo Álvares de Carvalho. Mas as confusões dos apelidos ficam para mais adiante...
Na linha temporal recuemos quase 150 anos...
Em Mondim de Basto, a 9 de fevereiro de 1869 nascia um menino de uma família com considerados pergaminhos, cuja madrinha de batismo foi Nossa Senhora da Graça, venerada no alto do imponente Monte Farinha. Era filho de Bernardo Gonçalves de Matos, de Atei, Mondim de Basto e de D. Maria do Patrocínio Pinto Coelho de Moura Teixeira, da vila de Mondim de Basto. Era pelo lado da sua mãe que lhe corria o "sangue azul" dos Pinto Coelho, Senhores de Felgueiras e do Paço de Simães, cuja linhagem ia até ao famoso antepassado medievo Egas Moniz, o aio do primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques. Nobre família cheia de história e histórias ao longo dos séculos, nas quais se incluía a de outro antepassado, Pero Coelho que viveu no séc. XIV e que foi um dos implicados no assassinato da também famosa Inês de Castro. Este avoengo do Comendador não teve um final feliz, o rei D. Pedro I com sede de vingança mandou executá-lo de uma forma brutal, proporcional ao amor que o rei sentia por Inês de Castro. Mandou arrancar o seu coração pelo peito e depois queimar o corpo!
Em 1891 ruma no vapor para o Brasil, para o Recife, capital de Pernambuco. Dinheiro não seria a razão certamente, era um emigrante especial! Quando chega ingressa na empresa do irmão da madrasta, a firma Álvares de Carvalho.
Era uma empresa enorme, conceituadíssima, fundada em 1851 por Joaquim Ferreira de Araújo Guimarães. Eram grandes importadores e retalhadores de ferragens, cutelarias e armas, com enormes depósitos de ferro, aço, cobre, latão e chumbo. Tinham uma loja icónica no centro da cidade, na Rua Duque de Caxias nº 86 chamada os Armazéns Caboclo. O curioso nome advinha de uns antigos sócios portugueses, da firma Ferreira Guimarães & C. que entraram em 1864 e que tinham a pele morena. Ora no Brasil os índios eram chamados de caboclos, nome algo injurioso por ventura, mas a cor exótica da pele dos sócios deu assim o nome aos armazéns, que ficou e perdurou no tempo, mesmo quando saíram os "caboclos" portugueses, em 1884 e entraram na sociedade o então já referido José Augusto Álvares de Carvalho, o "Comendador da Igreja", e Rodrigo Lopes de Oliveira, mudando o nome da firma para Álvares de Carvalho.
Este casamento durou pouco... A sua jovem mulher morre de parto, não deixando descendência. Mais tarde casa novamente com a brasileira D. Flora Isabel de Carvalho. Segundo um familiar terá sido um casamento arranjado que não lhe trouxe amor, vivendo vidas separadas, unidos apenas no formal papel!
Em 1908 o sogro volta para Portugal e deixa a sociedade unicamente para Alfredo Pinto Coelho. Novos sócios são admitidos... Mas é com a 1ª Grande Guerra Mundial que a firma Álvares de Carvalho ganha novo fôlego, através do negócio do ferro e do armamento. A desgraça de uns foi a sorte de outros! E Alfredo Pinto Coelho fica cada vez mais rico, rico, rico... E muda o nome! Acrescenta aos seus apelidos "Álvares de Carvalho", o nome da sua firma, da sua primeira mulher e do seu sogro. Passa a ser conhecido como Alfredo Álvares de Carvalho! Como se de uma operação de marketing se tratasse a sua nova imagem "esquece" as centenas de anos de história dos Pinto Coelho! A pessoa funde-se com a marca... Era certamente uma pessoa de visão, muito à frente do seu tempo! E de FIDALGO PASSA A "BRASILEIRO", O DO CABOCLO!
Mas a riqueza não lhe subiu à cabeça, apenas lhe aguçou a sua maior qualidade, a generosidade! Qualidade essa que pelas suas muitas ações como benemérito lhe deu o titulo de COMENDADOR, da Ordem de Cristo e da Ordem da Benemerência, pelos serviços prestados à comunidade brasileira, principalmente a de Pernambuco, e à comunidade portuguesa, a da sua terra natal, Mondim de Basto. Os anos 20 e 30 são o auge!
Em Pernambuco era adorado. A todos ajudava... Foi um grande apoio do Real Hospital de Beneficência Português, no qual foi provedor por mais de 20 anos e muitas doações lhe fez. Há aliás na imprensa da época uma notícia de uma viagem que fez à Europa para visitar outros hospitais para ver como podia melhorar aquela instituição pernambucana. Mas não ficou por aqui... Foi também um grande benemérito do Gabinete Português de Leitura do Recife, do Clube Português, do Circuito Católico de Pernambuco, presidente do Banco do Povo e mais, e mais... Quando o Comendador chegava de viagem de Portugal havia sempre uma enorme comitiva para o receber!
Mas era pela sua terra natal e pelos seus que dava tudo!
Imagine-se que no final dos anos 20 a vila ainda não tinha água canalizada e foi o Comendador que a trouxe, direitinha do Monte da Senhora da Graça. Ainda hoje essa água serve a parte antiga da vila! Mas muito mais houve... Muitas doações em dinheiro para os bombeiros e a banda de música, restauros da igreja matriz, da Capela do Senhor, construção da residência paroquial, transladação e reconstrução da Capela da Senhora da Piedade, que estava no cemitério e clara, a obra para a sua madrinha, a Nossa Senhora da Graça... Pagou o restauro do santuário, ofereceu várias imagens e reconstruiu a Casa do Ermitão e edifício de apoio aos peregrinos, que havia ardido durante um arraial de São Tiago.
Foi também o fundador da Santa Casa da Misericórdia de Mondim de Basto, em 1935 à qual doou a sua Casa da Costa e quinta anexa para o sustento, assim como uma grande quantia em dinheiro e parte das rendas de vários edifícios que tinha no Recife. Pode-se dizer que as suas máximas também eram as obras da Misericórdia, "dar de comer a quem tem fome", "dar de beber a quem tem sede"...
Mas procurou também embelezar e trazer um toque mais cosmopolita para a sua rural vila. Ofereceu-lhe uma original estátua em bronze, algo do género da Estátua da Liberdade! Só que esta foi batizada de "Primavera". O mistério da estátua ainda hoje permanece! Terá sido comprada a um sucateiro no Recife, após um leilão de armas da 1º Grande Guerra Mundial, trazidas de França, que o Comendador havia ganho e como bónus o sucateiro mostrou-lhe a estátua, que também tinha a mesma origem das armas. O sua autoria é desconhecida, mas... Será do francês Fréderic Auguste Bartholdi, autor da famosa Estátua da Liberdade? Será da sua oficina, de um seu discípulo? Ninguém sabe, mas o que é certo é que apresenta algumas semelhanças com outros seus trabalhos. De que região de França terá vindo? Possivelmente foi vendida após as destruições causada pela 1ª Grande Guerra, e o tema da Liberdade é recorrente em França, aliás também a Marianne, personificação da figura da República Francesa é apresentada a segurar a tocha da Liberdade. É um mistério que permanece. Esta "Marianne" batizada de "Primavera" foi colocada em frente da Casa do Eirô de Baixo, onde ainda permanece, a 1 de dezembro de 1932.
Mas a vida social e pessoal do Comendador também deu que falar! Já na casa dos 60 e tal anos conheceu em Mondim de Basto uma jovem que o deslumbrou e que foi o amor da sua vida! A separá-los, 46 anos de diferença de idade e uma condição social radicalmente oposta! Este seu novo amor chamava-se Maria Rosalina Pires dos Reis. Morava na Rua Velha e era filha de Francisco dos Reis e Cândida Pires. Nasceu a 18 de maio de 1915 e pertencia a uma família bastante humilde. Que escândalo! Um fidalgo, de uma família tão conhecida e conceituada, riquíssimo, casado ainda e a namorar com uma jovem senhora! O que as bocas calavam, as mentes todas falavam. Ninguém tinha coragem de o criticar, uns porque achavam que era uma excelente pessoa, outros porque lhe deviam tanto e outros ainda porque lhe queriam tanto (dinheiro)! O que é certo é que o seu casamento com Flora, a brasileira, nunca foi além do papel e ele nunca se quis separar dela, mas ainda assim todos sabiam da vida uns dos outros e todos aceitavam naturalmente! E assim foi...
Viveu maritalmente com Maria Rosalina na sua Casa do Eirô de Baixo e teve quatro filhos, os seus únicos descendentes, devidamente reconhecidos, apesar de nunca ter casado com a sua companheira. Nasceram dois rapazes e duas raparigas, Alfredo, Maria do Patrocínio, Maria de Lourdes e Artur.
Maria Rosalina acompanhava-o frequentemente nas suas viagens ao Brasil e era como esposa que era apresentada e reconhecida. Flora ficou esquecida, sem nunca ter sido lembrada... A família do Comendador nunca se terá conformado, pelos menos as duas irmãs "solteironas" que moravam na Casa do Eirô de Cima, paredes meias como o de Baixo sempre com sorrisos amarelos para a sua "cunhada" durante a vida do comendador e que depressa se tornaram semblantes fechados após o seu desaparecimento. Ainda há quem se lembre do "muro da vergonha" que foi construído após a morte do Comendador para separar os dois Eirôs. Assim as Senhoras Pinto Coelho não tinham de ver a mulher escolhida e os herdeiros legítimos do Comendador.
É tão fácil criticar... Mas as suas ações valeram por tudo e abafaram as invejosas palavras que possam ter sido ditas e muito pensadas. Muitas famílias de Mondim lhe devem, muitos foram os que ele deu trabalho numa terra sem nada para dar, levava-os às suas custas para o Brasil e iam trabalhar para a sua firma Álvares de Carvalho. Bastava pedir e ele dava a mão! Ainda há quem se lembre das esmolas da Casa do Eirô! Era um dia por semana que os pobres faziam fila à sua porta para receber uma bandeja de moedas que lhes era sempre dada sem falta.
Tudo isto durou até 11 de setembro de 1942, altura em que o Comendador morre no Porto com a idade de 73 anos. Em testamento deixou os seus bens do Brasil à sua legitima mulher, Flora e a muitos mais amigos, e à companheira e filhos os seus bens em Mondim de Basto. Pediu ainda que lhe fosse rezada todos os meses uma missa pela sua alma. E o pedido foi cumprido... Na Capela da sua Casa era sempre rezada missa e no final a família dava sempre a esmola a todos os pobres, como ele gostava. E assim foi assim até um dia...
Na linha temporal recuemos quase 150 anos...
O Assassínio de Inês de Castro. Óleo sobre tela, Karl Briullov, 1834. Museu Estatal Russo, São Petersburgo, Rússia. |
Em 1891 ruma no vapor para o Brasil, para o Recife, capital de Pernambuco. Dinheiro não seria a razão certamente, era um emigrante especial! Quando chega ingressa na empresa do irmão da madrasta, a firma Álvares de Carvalho.
Era uma empresa enorme, conceituadíssima, fundada em 1851 por Joaquim Ferreira de Araújo Guimarães. Eram grandes importadores e retalhadores de ferragens, cutelarias e armas, com enormes depósitos de ferro, aço, cobre, latão e chumbo. Tinham uma loja icónica no centro da cidade, na Rua Duque de Caxias nº 86 chamada os Armazéns Caboclo. O curioso nome advinha de uns antigos sócios portugueses, da firma Ferreira Guimarães & C. que entraram em 1864 e que tinham a pele morena. Ora no Brasil os índios eram chamados de caboclos, nome algo injurioso por ventura, mas a cor exótica da pele dos sócios deu assim o nome aos armazéns, que ficou e perdurou no tempo, mesmo quando saíram os "caboclos" portugueses, em 1884 e entraram na sociedade o então já referido José Augusto Álvares de Carvalho, o "Comendador da Igreja", e Rodrigo Lopes de Oliveira, mudando o nome da firma para Álvares de Carvalho.
Este casamento durou pouco... A sua jovem mulher morre de parto, não deixando descendência. Mais tarde casa novamente com a brasileira D. Flora Isabel de Carvalho. Segundo um familiar terá sido um casamento arranjado que não lhe trouxe amor, vivendo vidas separadas, unidos apenas no formal papel!
Anuncio dos Armazéns do Caboclo, onde aparece o Comendador ladeado pelos sócios e interessados. In Jornal do Recife, 1 de janeiro de 1929. |
Condecorações atribuídas a Alfredo Pinto Coelho, o Comendador Benemérito. |
Mas a riqueza não lhe subiu à cabeça, apenas lhe aguçou a sua maior qualidade, a generosidade! Qualidade essa que pelas suas muitas ações como benemérito lhe deu o titulo de COMENDADOR, da Ordem de Cristo e da Ordem da Benemerência, pelos serviços prestados à comunidade brasileira, principalmente a de Pernambuco, e à comunidade portuguesa, a da sua terra natal, Mondim de Basto. Os anos 20 e 30 são o auge!
Diploma de sócio benemérito do Gabinete Português de Leitura atribuído ao Comendador a 18 de janeiro de 1925. |
Mas era pela sua terra natal e pelos seus que dava tudo!
A rural vila de Mondim de Basto nos anos de 1915/1917. Postal ilustrado, edição de José Teixeira Torres, circulado em 1917. |
Imagine-se que no final dos anos 20 a vila ainda não tinha água canalizada e foi o Comendador que a trouxe, direitinha do Monte da Senhora da Graça. Ainda hoje essa água serve a parte antiga da vila! Mas muito mais houve... Muitas doações em dinheiro para os bombeiros e a banda de música, restauros da igreja matriz, da Capela do Senhor, construção da residência paroquial, transladação e reconstrução da Capela da Senhora da Piedade, que estava no cemitério e clara, a obra para a sua madrinha, a Nossa Senhora da Graça... Pagou o restauro do santuário, ofereceu várias imagens e reconstruiu a Casa do Ermitão e edifício de apoio aos peregrinos, que havia ardido durante um arraial de São Tiago.
Diploma de Irmão Honorário nº 1 da Santa Casa da Misericórdia de Mondim de Basto, atribuído ao Comendador a 1 de outubro de 1936. |
Estátua "A Primavera" oferecida pelo Comendador Alfredo Pinto Coelho à sua vila. Largo do Conde de Vila Real, Mondim de Basto. |
O Comendador com a companheira Maria Rosalina Pires dos Reis durante uma viagem ao Buçaco em 1934. Fotografia gentilmente cedida por Luís Jales de Oliveira. |
Mas a vida social e pessoal do Comendador também deu que falar! Já na casa dos 60 e tal anos conheceu em Mondim de Basto uma jovem que o deslumbrou e que foi o amor da sua vida! A separá-los, 46 anos de diferença de idade e uma condição social radicalmente oposta! Este seu novo amor chamava-se Maria Rosalina Pires dos Reis. Morava na Rua Velha e era filha de Francisco dos Reis e Cândida Pires. Nasceu a 18 de maio de 1915 e pertencia a uma família bastante humilde. Que escândalo! Um fidalgo, de uma família tão conhecida e conceituada, riquíssimo, casado ainda e a namorar com uma jovem senhora! O que as bocas calavam, as mentes todas falavam. Ninguém tinha coragem de o criticar, uns porque achavam que era uma excelente pessoa, outros porque lhe deviam tanto e outros ainda porque lhe queriam tanto (dinheiro)! O que é certo é que o seu casamento com Flora, a brasileira, nunca foi além do papel e ele nunca se quis separar dela, mas ainda assim todos sabiam da vida uns dos outros e todos aceitavam naturalmente! E assim foi...
Viveu maritalmente com Maria Rosalina na sua Casa do Eirô de Baixo e teve quatro filhos, os seus únicos descendentes, devidamente reconhecidos, apesar de nunca ter casado com a sua companheira. Nasceram dois rapazes e duas raparigas, Alfredo, Maria do Patrocínio, Maria de Lourdes e Artur.
O Comendador Alfredo Pinto Coelho, mais velho, na década de 30 do séc. XX. Fotografia gentilmente cedida pelo seu neto Alfredo Simões Pinto Coelho. |
É tão fácil criticar... Mas as suas ações valeram por tudo e abafaram as invejosas palavras que possam ter sido ditas e muito pensadas. Muitas famílias de Mondim lhe devem, muitos foram os que ele deu trabalho numa terra sem nada para dar, levava-os às suas custas para o Brasil e iam trabalhar para a sua firma Álvares de Carvalho. Bastava pedir e ele dava a mão! Ainda há quem se lembre das esmolas da Casa do Eirô! Era um dia por semana que os pobres faziam fila à sua porta para receber uma bandeja de moedas que lhes era sempre dada sem falta.
Jazigo do Comendador e família mandado construir por ele no cemitério de Mondim de Basto. |
Na capela já não há missa, na casa já não há família! Já não se ouve a banda de música nem o tilintar das moedas nas bandejas... SILÊNCIO é tudo o que resta, um silêncio que percorre todas as ruas da vila. Ainda assim uma voz, não sei, algo, teima em lembrar que o mais nobre dos gestos não pode ser esquecido, pois tal como diz o poeta e nunca é demais repetir...
"A ingratidão é o imposto cobrado à generosidade."
Carlos Drummond de Andrade
O neto do Comendador, Alfredo Simões Pinto Coelho com a sua avó Maria Rosalina Pires do Reis, carinhosamente chamada de "Avó Lina". Mondim de Basto, 2001. |
Ao neto do Comendador, Alfredo José Simões Pinto Coelho pela sua enorme generosidade em me ajudar nesta hérculea tarefa;
A Luís de Jales de Oliveira pela cedência de algumas fotografias do seu acervo particular.
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