Os Mortos de Sobrecasaca

"Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis, alto de muitos metros e velho de infinitos minutos, em que todos se debruçavam na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca. Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos. Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava, que rebentava daquelas páginas."

Carlos Drummond de Andrade, Os Mortos de Sobrecasaca (Sentimento do mundo, 1940)

quarta-feira, 6 de julho de 2016

A Revolta dos Padres - O Padre Guerreiro de Basto por "DEUS, PÁTRIA E REI"

O que leva os "homens de Deus" a pegar em armas e lutar? A lutar, segundo o lema monárquico, por Deus, pela Pátria e pelo Rei! E o que leva um homem a manter-se fiel até ao fim da sua vida pelos seus ideais e nada, nem ninguém o demovendo, apesar das agruras que tudo isso trouxe a si e à sua família?

Esta é história da Revolta dos Padres durante as incursões monárquicas e de um dos seus líderes mais carismáticos, o padre Domingos Pereira.


Tropas republicanas em Cabeceiras de Basto, junto ao Mosteiro de São Miguel de Refojos, durante a 2ª Incursão Monárquica. No canto esquerdo, o líder da revolta realista de Cabeceiras, o padre Domingos Pereira.
In Ilustração Portuguesa nº 336, 29 de julho de 1912.


Rei D. Manuel II, o Patriota (1889-1932).
Fotografia de W. S. Stuart, autografada e tirada no exílio, 
em Richmond, Inglaterra, 1915.

"(...) Forçado pelas circunstâncias, vejo-me obrigado a embarcar
no "iate" real "Amélia". Sou português e sê-lo-ei sempre.
Tenho a convicção de ter sempre cumprido o meu dever de rei
em todas as circunstâncias e de ter posto o meu coração
e a minha vida ao serviço do meu país. Espero que ele,
convicto dos meus direitos e da minha dedicação,
o saberá reconhecer. Viva Portugal! (...)
Sempre muito afectuosamente, Manuel
"Iate" real "Amélia", 5 de Outubro de 1910".
(declaração do rei antes de partir para o exílio, 
para ser entregue ao presidente do governo Teixeira de Sousa).
"Ó Pátria, Ó Rei, Ó Povo,
Ama a tua Religião
Observa e guarda sempre
Divinal Constituição

Viva, viva ó Rei
Viva a Santa Religião
Vivam Lusos Valorosos
A feliz Constituição (...)"

Assim começa o Hymno da Carta, escrito por D. Pedro IV e hino nacional de 1834 até 1910, o derradeiro fim de quase 800 anos de monarquia. E assim começa também esta história, no dia 5 de outubro de 1910...

Pelas 11 horas da manhã após um golpe militar é hasteada a bandeira verde e vermelha nos Paços do Concelho de Lisboa e proclamada a República. À tarde, a família Real que se havia refugiado no Palácio de Mafra desloca-se para a praia da Ericeira, onde a bordo do iate real Amélia, parte para o forçado exílio, rumo a Gibraltar. Nele seguem o último rei de Portugal, D. Manuel II, a sua mãe a rainha D. Amélia, a sua avó a rainha D. Maria Pia e o seu tio o infante D. Afonso. Apenas D. Amélia voltaria a Portugal 35 anos depois! D. Manuel II voltaria antes, em 1932... Mas desta vez morto, com autorização de Salazar para ser sepultado no Panteão Real da Dinastia de Bragança, no Mosteiro de São Vicente de Fora, em Lisboa.
Henrique Mitchell de Paiva Couceiro.
(1861-1944)
Foi o chefe dos realistas e responsável
pelas várias incursões monárquicas
entre 1911 e 1919 que visavam
restaurar a Monarquia em Portugal.
Fotografia do acervo familiar.

No dia seguinte à implantação da República, muitos foram os que se tornaram de repente republicanos... Há que dançar conforme a música, já diz o ditado! No entanto apesar do novo regime ser aceite com relativa passividade, principalmente nas grandes cidades, muitas foram as tentativas para restaurar a Monarquia e perturbar os planos da República. E a encabeçar os agora chamados "revoltosos" e "realistas" estava o líder Paiva Couceiro. E no meio de tantos novos "fora-da-lei" estavam nada mais, nada menos do que muitos PADRES!

Os sacerdotes, que haviam jurado dedicar a sua vida a Deus e a bem do próximo, resolveram juntar-se em jeito de cruzada contra os novos infiéis e inimigos da Santa Religião, os republicanos! Amadurecidas no seio das Lojas Maçónicas e da Carbonária, já vinham de longe as intenções de mais uma vez quebrar a Igreja, que no final da monarquia dispunha de uma situação relativamente privilegiada, apesar de estar bastante subjugada ao Estado. E claro, assim que mudou o regime, os republicanos iniciaram a perseguição!

Papa Pio X (Pontíficado: 1903-1914).
Perante as duras leis da República Portuguesa
principalmente a Lei da Separação, o papa
faz um dos juízos mais duros da história na
sua Encíclica "Jandudum in Lusitania" ao
condenar as ações do Estado Português e
reiterando todo o apoio aos bispos portugueses.
A circulação desta Encíclica em Portugal
foi fortemente limitada pelo governo português.
E novamente acordaram os antigos fantasmas... Os novos decretos puseram em vigor as antigas leis de expulsão dos Jesuítas e do encerramento e extinção das Ordens Religiosas. Militares e muitos populares expulsam dos conventos os religiosos e excessos são cometidos no calor do momento. Muitos ao serem perseguidos não vêem outra solução se não fugirem para o Brasil. Saem decretos atrás de decretos com vista a combater o clericalismo, e alguns deles, obviamente, feriram de morte os sacerdotes, nomeadamente a abolição dos dias santos e das festas religiosas, a proibição de darem aulas ao ensino primário, a proibição dos juramentos religiosos e a gota de água para o conservador catolicismo, a possibilidade do divórcio! Muitas mais "machadadas" houveram como a lei de 18 de fevereiro de 1911 que criou o registo civil obrigatório, sendo todo o direito de registo retirado à Igreja. Isto para um Estado que queria ser laico, tudo bem, mas a maneira retorcida e humilhante como foi feita não seria tão boa! O novo regime estipulou que para a celebração religiosa de batismos, casamentos e funerais fosse obrigatoriamente apresentada uma certidão, que por sinal era bastante cara e muitas vezes dificultada de propósito pelos funcionários do novo registo civil. Havia até relatos de pessoas pobres que já não casavam pela igreja devido ao valor elevado do custo das certidões. E isto para Igreja era fatal, para não falar na ingerência do Estado nos assuntos internos e administrativos eclesiásticos. O golpe final é dado a 20 de abril de 1911 com a Lei de Separação do Estado das Igrejas, nacionalizando todos os bens eclesiásticos, condicionando o culto religioso, estabelecendo as "cultuais", organizações laicas que iriam gerir os bens da Igreja, e retirando os rendimentos aos sacerdotes, concedendo a jeito de humilhação e como forma de controle, uma pensão com condições muito restritas a quem a requeresse. Perante tudo isto o Papa Pio X condena veemente as atitudes republicanas, pois "despreza a Deus e repudia a profissão da fé católica".

Não será pois de estranhar que muitos padres se recusem a seguir as imposições e os novos rumos republicanos, passando ora a lutar na sombra ora a despir as batinas e a pegar em armas.
Alguns dos padres "revoltosos" que engrossaram as fileiras do exército realista de Paiva Couceiro.
Fotografia tirada no exílio, em Tui, Pontevedra, Galiza.
In Ilustração Portuguesa nº 337, 5 de agosto de 1912.
Padre Domingos Pereira.
Fotografia gentilmente cedida pela bisneta Fernanda
Paula Pereira.

E é aqui que entra o protagonista desta história, um padre que em 1911 já não o era, Domingos Pereira!

Mas recuemos uns bons anos atrás...

A 9 de agosto de 1862, às 9 horas da manhã, em Vilarinho de Negrões, freguesia de Negrões e concelho de Montalegre, nascia Domingos, filho dos lavradores António Pereira e Luísa Gonçalves Carreira. O seu padrinho foi o tio materno, João Albino Gonçalves Carreira, pároco de Refojos, em Cabeceiras de Basto. A longa tradição de haver vários sacerdotes na família materna ditou o destino de Domingos e do seu irmão Manuel, ao ingressarem no Seminário de Braga para seguirem a vida eclesiástica.

Em 1886, aos 24 anos, já era padre e por influência do tio foi para pároco de Outeiro, em Cabeceiras de Basto. O tio devia gostar de ter a família por perto, pois o irmão Manuel e José Maria também foram morar para lá. Manuel também se ordenou sacerdote e José Maria optou pela vida laica e tornou-se funcionário público.

Naquele tempo, não é que hoje em dia não aconteça, a religião misturava-se com a política, e o jovem padre Domingos era um fervoroso militante do partido Regenerador, um dos partidos do rotativismo da monarquia constitucional. Já o seu tio padre era da oposição, o partido Progressista... E este despique partidário não deu bons resultados! O tio tentou a toda a força que ele se tornasse militante do seu partido, pedindo até ajuda ao Arcebispo de Braga, D. Manuel Baptista da Cunha para o convencer. Mas a ameaça velada de o desterrar para a paróquia isolada de Lamares, em Vila Real não o fez vergar! Naquele momento o padre Domingos bate o pé e prefere deixar de ser padre, já que a vocação não seria muita, a trair os seus ideais terrenos. Venceu a política!
O padre Domingos Pereira, sentado ao centro, rodeado por amigos monárquicos, incluindo, do lado esquerdo, sentado e de luvas, o 2º Visconde de Paço de Nespereira e atrás, o primeiro do lado direito, Serafim Gomes de Paula Bastos, que veio a ser sogro do seu filho José de Sousa Pereira.
Fotografia gentilmente cedida pela bisneta Fernanda Paula Pereira.

Valentina da Conceição Sousa (1871-1954)
Fotografia gentilmente cedida pelo bisneto António Franco.
Com o cabeção e a batina de lado dedica-se ao ensino no Liceu da Cabeceiras de Basto, dando aulas de História, Geografia, Português e Latim. E como militante ativo do seu partido do coração assume lugares de Administrador do Concelho em Cabeceiras de Basto e Fafe, consoante o partido Regenerador estava no poder ou não!

E quebrados os votos sacerdotais, apesar de nunca os ter resignado oficialmente, são também quebrados os votos de celibato! O padre Domingos passa a viver maritalmente com Valentina da Conceição Sousa, natural de Pedraça, em Cabeceiras de Basto, e afilhada de Manuel Joaquim Rebelo de Sousa, bisavô do atual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Aliás, segundo testemunho familiar, Valentina pertenceria também a esta família. Curiosas estas ligações indiretas e improváveis entre pessoas ligadas à Monarquia e à República! E sucedem-se os filhos... Bem, dois já eram nascidos desta relação, uma rapariga Clotilde e um rapaz, o José. Depois vieram mais duas raparigas, a Júlia e a Laura e dois rapazes, o Alberto e o Carlos.

Mas a calma da sua nova vida civil é quebrada com o implantação da República. Nunca poderia aceitar tal regime, era monárquico convicto e apesar de já não exercer o sacerdócio era crente e reconhecia os duros golpes que estavam a ser infligidos contra a Santa Religião. E assim tornou-se um dos muitos resistentes!

D. Miguel Januário de Bragança (1853-1927),
filho do rei D. Miguel I e pretendente ao trono.
A 30 de janeiro de 1912 é feito um acordo entre
as duas fações da família real, o rei D. Manuel
e o seu primo D. Miguel, no chamado Pacto de Dover,
em que D. Miguel reconhecia como legitimo rei
D. Manuel e este reconhecia o seu primo como herdeiro do trono.
No entanto as duas fações continuaram a não se entender,
resultando a 17 de abril de 1922 no Pacto de Paris ditando
que no caso do rei D. Manuel não ter filhos seria o herdeiro
natural o filho de D. Miguel, D. Duarte Nuno de Bragança,
pai do atual Duque de Bragança, D. Duarte Pio e pretendente
ao trono português.
As tentativas de repor a Monarquia começaram logo um ano depois, a 5 de outubro de 1911, com a 1ª incursão monárquica em Vinhais, cuja invasão através da Galiza das tropas realistas lideradas por Paiva Couceiro levou ao hastear da bandeira azul e branca. Mas tiveram de recuar e falhou a tentativa! Muitos foram os esforços para reunir apoiantes e lutadores da causa, e tiveram muitos, mas não os suficientes! Havia muitos padres e maioritariamente fidalgos da aristocracia, titulados ou não, que haviam perdido o seu suporte com a partida do rei. Os chamados "pinocas" de anel de brasão no dedo! E claro que o apoio do rei deposto era fundamental, mas nunca o foi dado declaradamente e muito menos incondicionalmente. Os monárquicos estavam divididos... E foram a Londres tentar um acordo com o rei exilado. Uma das condições para o consenso seria o impedimento do regresso da rainha-mãe D. Amélia, tida por alguns como uma influência nefasta para o rei. Claro que a reação de D. Manuel não podia ser outra... "Por este preço, nem todas as coroas do mundo!". E mais, havia os manuelistas, que apoiavam o rei D. Manuel e a havia os miguelistas que queriam que o novo rei fosse D. Miguel Januário de Bragança, um primo afastado descendente do ramo miguelista. Esta divisão levou Paiva Couceiro a combater com a bandeira monárquica sem a coroa, o que naturalmente não agradou ao rei D. Manuel.

Mas voltemos ao protagonista, o padre Domingos... A sua fama de resistente monárquico havia levado a que Paiva Couceiro, que ainda não o conhecia pessoalmente, o contactasse pedindo a sua colaboração com 400 homens para uma 2ª incursão que estava a ser preparada para o inicio de julho. O padre Domingos aceitou logo... Deveria comandar a invasão em Cabeceiras de Basto.

A ideia de Paiva Couceiro era tomar Valença e Chaves e esperar que a revolta se alastrasse como um rastilho por todo o norte, tido como monárquico, principalmente as zonas mais rurais que ao longo dos anos tinham estado debaixo do sagrado manto da Igreja devido à influência dos padres nas suas aldeias. A invasão passaria a fronteira por Vila Verde da Raia, visto que estavam exilados na Galiza. Tinham de avançar depressa pois o governo espanhol havia lhes dado um ultimato, ou avançavam com a revolta ou eram expulsos do país. Espanha tinha uma posição dúbia, por um lado apoiava os monárquicos portugueses, porque tinham como soberano um rei, Afonso XIII, e por outro queria ser neutra para não entrar em conflito diplomático com o novo governo republicano português.

João Augusto Mendonça Barreto,
Administrador do Concelho de
Cabeceiras de Basto.
In Ilustração Portuguesa nº 335,
22 julho de 1912.
Mas o padre Domingos precisava de treinar os seus homens, habituados unicamente a tiros de caçadeira. Como faria para explicar os tiros que se iam ouvir? Como mente brilhante que era lembrou-se de lançar a ideia de um concurso de tiro aos pombos, assim podia explicar o treino e os ruidosos tiros! O Administrador do Concelho, ingenuamente, havia logo concordado com a curiosa ideia que achava que ia trazer alguma vida social ao marasmo de Cabeceiras de Basto. Nunca lhe deve ter passado pela mais pequena ideia o que iria acontecer. Nem tão pouco ao Presidente da Câmara que decidiu viajar. Aliás a apreensão de armamento em Cabeceiras, no dia 5 de julho, não levantou suspeitas! Se calhar achavam que os pombos eram tantos...

Os padres da região uniram-se! O padre Domingos tinha o apoio dos párocos de Riodouro, o padre António Barroso Leite, de Painzela, o padre José Pina, e de Bucos, o abade Manuel Leite Araújo. Este último escondia até dezenas de espingardas Mauser atrás do altar-mor!

Em cima, os antigos Paços do Concelho de
Celorico de Basto, onde prenderam o
Administrador do Concelho. Ao centro, a
braçadeira usada pelos realistas, e a fotografia do
Administrador do Concelho. Em baixo, o verso
da bandeira monárquica, com uma estampa de
Nossa Senhora da Conceição, hasteada nos
  Paços do Concelho, pelas 10 horas e 15 minutos
da manhã do dia 6 de julho de 1912.
Clichés de Carlos Dá Mesquita.
In Ilustração Portuguesa nº 337, 5 agosto de 1912.
E após ter sabido que Paiva Couceiro iniciaria a invasão no dia 6 de julho, mandou no dia anterior oito dos seus homens cortar os fios do telégrafo e destruir algumas pontes. De madrugada ouviram-se tiros... O chefe do telégrafo havia dado conta. Pela manhã de sábado, dia 6 de julho começou o impensável! O Administrador tenta a todo o custo arranjar um carro que o levasse a Braga para avisar o sucedido, mas apenas conseguiu uma carroça puxada a cavalo, a chamada "vitória". Após vários contratempos na viagem, regressa ao final do dia com o guarda-fios para arranjar o telégrafo e alguns carbonários para fazerem frente aos monárquicos, que já haviam repelido a tiro o secretário das finanças municipal e as forças republicanas. Tiros são dados para o ar pelas tropas dos padres Domingos e José Pina, que se encontravam nos montes sobranceiros à vila, de modo a afugentar os carbonários e o Administrador que estavam na praça central, então chamada de Barjona de Freitas, hoje em dia conhecida como a Praça da República. Mais tiros são disparados e o Administrador é gravemente atingido. Foge para a casa mais próxima, do negociante José Teixeira Leite Bastos, mas não aguenta os ferimentos e morre.
A frente da bandeira monárquica hasteada nos Paços do
Concelho de Celorico de Basto.
In Ilustração Portuguesa nº 337, 5 de agosto de 1912.

Regimento de Infantaria 16 em frente ao Mosteiro de São Miguel de Refojos,
em Cabeceiras de Basto, julho de 1912.
In Reimaginar Guimarães, Coleção de Fotografia da Muralha.
A revolta alastra para os concelhos vizinhos... Entretanto em Celorico de Basto, o padre de Molares, Francisco de Almeida Barreto, manda tocar os sinos a rebate incitando a população a revoltar-se e a deter o Administrador do Concelho de Celorico, António Rodrigues Salgado. A bandeira monárquica é hasteada e por pouco o Administrador não é fuzilado! Enquanto isso, para animar o povo, sob um calor tórrido, a prima do padre distribuía uns bagaços pelos "revoltosos". Típico! O que interessa é animar a malta...

Finalmente no dia 7 de julho, num soalheiro e quente domingo, perante uma multidão o padre Domingos proclama a monarquia hasteando a real bandeira nos Paços do Concelho de Cabeceiras de Basto.
Grupo de sargentos, cabos e soldados de artilharia de montanha da "coluna
negra" com boca de fogo e munições, junto da Casa do Mosteiro, pertencente
à família do Barão de Basto. Cabeceiras de Basto, julho de 1912.
In Reimaginar Guimarães, Coleção de Fotografia da Muralha.

Durante 4 dias a vila esteve nas mãos dos padres "revoltosos" repelindo as tentativas das tropas republicanas para retomar o controlo do poder.
Em cima e ao centro, as casas do padre Domingos e irmão padre Manuel
destruídas pelos incêndios. Em baixo, à porta da cadeia, rodeados por
soldados republicanos, o padre José Pina, de Painzela e outros "revoltosos".
Cabeceiras de Basto, julho de 1912.
In Ilustração Portuguesa nº 336, 29 julho de 1912.

Mas quando o padre Domingos sabe do falhanço de Paiva Couceiro em Chaves e após Celorico de Basto e Fafe já terem sido tomadas pelos republicanos, decide abandonar a vila e refugiar-se nos montes vizinhos, na Borralha, em Salto, Montalegre. Ao saber que Paiva Couceiro havia recuado para a Galiza, manda dispersar as suas tropas. Quando os republicanos chegam a vila de Cabeceiras de Basto está deserta! As tropas republicanas dirigidas pelo comandante Sarsfield Cabral decidem ficar acampadas na praça.

Os soldados e alguns populares, como retaliação decidem incendiar a casa do padre Domingos e do irmão, o padre Manuel, no lugar da Raposeira. A mulher e os filhos ao verem as tropas a aproximarem-se fogem e escondem-se nos campos. Ao longe vêem as altas labaredas e os uivos desesperados dos seus cães a serem consumidos pelas chamas. Não houve clemência! A família escapou andado fugida durante dois dias e duas noites, dormindo ao relento onde calhava. Alberto, o filho mais novo do padre, tinha apenas um ano...

Mas os incendiários não pararam por aqui. Queimaram ainda a casa do secretário do padre Domingos, em S. Nicolau, a capela do cemitério e a casa de um comerciante que havia supostamente envenenado o vinho que as tropas republicanas beberam! Na verdade as tropas assaltaram a taberna, pois ninguém na vila lhes dava mantimentos, e eles "de língua de fora" devido ao bacalhau salgado das suas provisões, resolveram matar a sede na pipa que fora envenenada antes da sua chegada!

Tribunal Marcial de Cabeceiras de Basto, onde foram julgados
os "revoltosos" entre julho e setembro de 1912.
In Ilustração Portuguesa nº 338, 12 agosto de 1912.
O padre Domingos assistiu a tudo de perto, escondido com dez dos seus fiéis homens. Fica em Cabeceiras até às vésperas de Santiago, no dia 24 de julho, altura em que como tem a cabeça a prémio pela exorbitante quantia de 10 contos de réis, resolve fugir para a Galiza e juntar-se a Paiva Couceiro, onde finalmente o conhece pessoalmente.

Foram detidas 45 pessoas, alegadamente conspiradores e revoltosos. As casas dos simpatizantes monárquicos foram invadidas e destruído o mobiliário. Os conspiradores são levados a tribunal de guerra. O padre Domingos é julgado à revelia e condenado a 20 anos de prisão.

Partida do paquete Tucuman de Lisboa com destino ao Brasil.
Nele partiram o padre Domingos e mais 50 exilados.
Clichés de Joshua Benoliel.
In Ilustração Portuguesa nº 343, 16 de setembro de 1912.
Entretanto como Espanha, mais uma vez, não quer problemas com Portugal coloca entraves à permanência dos monárquicos portugueses. O padre Domingos decide assim partir para o Brasil juntamente com mais 50 exilados no dia 1 de setembro de 1912 no paquete Tucuman. Mas por lá não fica muito tempo e  regressa a Espanha.

Em 1919 dá-se a 3º incursão monárquica que levou à "Monarquia do Norte" proclamada a 19 de janeiro. O padre Domingos, como não podia deixar de ser, adere à revolta e ajuda a tomar Vila Real, hasteando a bandeira azul e branca a 25 de janeiro. Mas foi "sol de pouca dura" e falhou mais uma vez! Os monárquicos novamente fogem para a Galiza, incluindo o padre Domingos. E novamente é julgado à revelia e condenado a mais 20 anos de prisão.

Padre Domingos Pereira.
Fotografia gentilmente cedida pelo
bisneto António Franco.
Em 1925 regressa em segredo a Portugal e à sua querida Cabeceiras de Basto. Resolve juntar-se à família e viver o resto dos seus dias sem guerras nem revoltas, apenas queria paz. Nunca passou um dia na prisão apesar de lhe terem destinado 40 anos!

A 25 de novembro de 1945 morre em Cabeceiras de Basto. Segundo testemunho familiar, na sacristia do Mosteiro de São Miguel de Refojos vestiram-lhe a batina e colocaram-lhe o cabeção, e foi enterrado vestido de padre. Na verdade, oficialmente nunca resignou, e toda a vida foi chamado de "padre". Quis a família que assim fosse também na eternidade...

As tentativas para repor a Monarquia também elas morreram. O rei D. Manuel II nunca quis voltar por meio de um golpe militar, nunca quis que a Monarquia fosse restaurada pela força. O seu profundo amor por Portugal não permitia que fosse de outra maneira. Queria que o povo se manifestasse... Queria que Portugal o quisesse de novo...

"Portugueses, unam-se pela Pátria: sejamos fortes e mostremos ao mundo e àqueles que nos seguem atentamente com cobiça, que Portugal há-de renascer ainda, numa era de grandeza e prosperidade. Pensemos no País, sem outras ideias do que a que devemos ter sempre presente: Nascemos Portugueses, queremos reviver as glórias passadas, queremos levantar bem alto o nome de Portugal, queremos viver e morrer Portugueses!(...) Manuel Rei." 
Excerto da carta do rei D. Manuel II a Aires de Ornelas, 1919.

97 ANOS DEPOIS, NUNCA ESTAS PALAVRAS ESTIVERAM TÃO ATUAIS...

Gravação onde surge a família Real no exílio, nomeadamente D. Manuel II, a sua mãe a rainha D. Amélia, e a sua mulher D. Augusta Victória, durante uma entrega de prémios de uma corrida de carruagens em Richmond, Inglaterra.
Video da British Pathé, Richmond Royal Horse Show, 1920. In https://www.youtube.com/watch?v=vuaTG8b3N_k






Agradecimentos especiais:
Aos bisnetos do padre Domingos Pereira, Fernanda Paula Pereira e António Alberto Franco;
A Maria Fernanda Campos Carneiro, uma apaixonada sobre o assunto Incursões Monárquicas e Padre Domingos Pereira.

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