Os Mortos de Sobrecasaca

"Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis, alto de muitos metros e velho de infinitos minutos, em que todos se debruçavam na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca. Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos. Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava, que rebentava daquelas páginas."

Carlos Drummond de Andrade, Os Mortos de Sobrecasaca (Sentimento do mundo, 1940)

sábado, 7 de novembro de 2015

A Protetora

A tia D. Ana, já muito velhinha, acompanhada da sobrinha Mariquinhas,
do filho, o arquiteto Baltazar de Castro e da nora Mariana Amélia.
Lugar de Baloutas, Painzela (Cabeceiras de Basto), Anos 40.
Escondida no fundo, bem lá no fundo da memória... Esquecida e desconhecida por muitas pessoas da família, Ana da Silva Ramalho, ou melhor, a tia D. Ana como ficou conhecida era daquelas pessoas que deviam ser sempre recordadas...

E porquê? A tia D. Ana não teve uma vida de glória nem de grandes feitos! Mas, é recordada pelas poucas pessoas mais velhas da família que ainda se lembram, com um enorme carinho e ternura... Tudo isto devido a uma qualidade excepcional... A sua Bondade!

Vamos então recuar no tempo... E contar a história ao contrário!

Baltazar e a sua mãe D. Ana. Baloutas,
Cabeceiras de Basto, anos 40.
Lugar de Baloutas, em Cabeceiras de Basto, anos 40, altura em que foi tirada esta fotografia, pouco tempo antes do seu falecimento... D. Ana já estava muito debilitada devido ao avanço da idade, contudo ainda arranjava forças para se levantar quando chegava o seu querido filho, o arquiteto Baltazar de Castro, da longínqua capital Lisboa. Baltazar visitava-a frequentemente, apesar da distância, pois a sua mãe já não tinha mais nenhum filho perto dela e o seu marido havia "partido" já há muitos anos.

A tia D. Ana esteve sempre presente quando a família precisou dela, sempre para dar a sua ajuda, sempre para dar alguma palavra de conforto... Agora era ela que precisava de carinho, de palavras amigas, e tinha-as... Apesar dos filhos não estarem perto dela, estava o resto da família, como os seus muitos sobrinhos, uma delas, era a minha tia Cândida, que ainda se lembra como ela gostava de carinhos, de festas, beijinhos, que a penteassem e mexessem nos seus longos e finos cabelos brancos sentada no pátio da sua casa junto aos canteiros de flores...

A sua casa já não tinha o reboliço de outras eras, quando os filhos e os sobrinhos da Casa do "Manco" entravam a correr por ali fora, mas não estava vazia, D. Ana tinha a companhia da sua fiel criada e seu filho, afilhado do arquiteto Baltazar.

A tia D. Ana e o marido, o tio José, com os filhos e neto. Séc. XX, década de 10.
Os seus filhos mais velhos, Rozendo, Celestino e Olaia haviam partido no vapor para o Brasil, tal como tinha acontecido com muitos dos seus familiares, apenas ficaram dois filhos, um dependente de sua mãe porque possuía uma deficiência e Baltazar, que cedo saiu de Cabeceiras de Basto, partindo para o Porto para estudar. Os seus pais passavam longas temporadas na sua casa do Porto para acompanhar o filho, logicamente, e foi precisamente nessa altura, por volta de 1905 ou 1906 que receberam na sua casa a sua sobrinha, a minha bisavó Julinha, que o meu trisavô "Manco" havia desterrado para local suficientemente longínquo da pequena aldeia de Baloutas, em Cabeceiras de Basto, para esconder uma gravidez indesejada e afastar da influência daquele que veio a ser o meu bisavô, Adriano Augusto José Machado. A tia D. Ana sempre protegeu a minha bisavó, achava que ela devia escolher quem ela quisesse para casar, ao contrário dos cânones da época, que se limitavam a casamentos combinados, principalmente em famílias abastadas, como era o caso daquela família burguesa.

O meu tio-trisavô José com trinta e poucos anos.
Fotografia tirada possivelmente no Rio de Janeiro, Brasil,
 onde foi negociante. É a fotografia mais antiga conhecida
de um membro da família Castro, de Painzela, ainda da
década de 70 do séc. XIX. 187(?).
D. Ana não se preocupava com essas convenções da sociedade, pois a sua origem humilde e a sua condição inicial de mãe solteira assim a havia ensinado!

Filha de Joaquim da Silva e Joaquina Ramalho, D. Ana nasceu pobre em meados do séc. XIX, em Painzela, Cabeceiras de Basto. Como era normal em famílias de baixas condições sociais, teve de sair de casa e ir trabalhar para ganhar o sustento, primeiro como padeira e depois criada de servir na casa que havia de ser a sua.

D. Ana casou-se com José Joaquim da Silva Castro, irmão mais velho de Joaquim José da Silva Castro, o "Manco" e trouxe o que tinha de melhor para aquela família burguesa "estrangulada" por convenções sociais, a sua bondade, simplicidade e despreocupação em relação às regras sociais!

A virtuosa tia D. Ana, que nunca perdeu o pronome "Dona", mesmo quando entrou para a família Castro, foi um pilar e uma lufada de ar fresco que marcou muitas pessoas no seu tempo.

As virtudes deveriam ser sempre o mote para nos lembrarmos de alguém, alguém comum como tantas outras, alguém que foi mãe, tia, avó e que viveu sempre para a família dando-lhe o que ela tinha de melhor, a sua bondade e a sua proteção...

A tia D. Ana, ainda jovem, tirada quando nasceu o seu filho Baltazar de Castro, em 1891.

5 comentários:

  1. Mais uma vez parabéns pelo excelente trabalho que o Joaquim tem feito não sei como consegue descobrir tudo isto só mesmo com muita força de vontade e dedicação . Abraço

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  2. Quero mais, sempre mais simplesmente adoro.

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  3. Quero mais, sempre mais simplesmente adoro sou viciada.

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    1. Muito obrigado Ana! Bem, mais vai haver, mas há que ter paciência. As coisas boas temos de saber esperar por elas :) . E além disso temos de dar folga à criatividade para a próxima estória! Brevemente mais...

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    2. Obrigada eu Joaquim! Vou ter um pouco de paciência então. Até breve

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