Os Mortos de Sobrecasaca

"Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis, alto de muitos metros e velho de infinitos minutos, em que todos se debruçavam na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca. Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos. Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava, que rebentava daquelas páginas."

Carlos Drummond de Andrade, Os Mortos de Sobrecasaca (Sentimento do mundo, 1940)

sábado, 5 de novembro de 2016

Alma boémia - Uma viagem de Celorico de Basto ao Rio de Janeiro

Eça de Queirós uma vez terá dito que o português do Brasil era um português com açúcar, falado de uma forma doce e alegre, com "ginga"! Mas serão os portugueses pessoas carrancudas, que não gostam de alegria e diversão?

Festa de Carnaval na casa de José Camello Teixeira, no dia de aniversário da sua mulher Glória.
Ao centro, de pé, José Camello Teixeira com um chapéu árabe "tarbouch".
Ipanema, Rio de Janeiro, 1935.
Fotografia gentilmente cedida pela família.
Não, claro que não! E a prova está aqui nesta história, a história de um "doce" português das Terras de Basto que cedo emigrou para o "doce" Brasil e consigo levou a sua "alma boémia".

Vamos recuar no tempo, por terras de norte de Portugal, em Celorico de Basto... Vamos até ao dia 24 de outubro de 1885, dia em que foi batizado José Camello Teixeira, nascido na Freguesia de Borba da Montanha, filho de João Teixeira Camello e Ermelinda Pires. Pertencia a uma família numerosa, de nove filhos, cinco rapazes e quatro raparigas, do lugar de Quintela. O desejo de seu pai, tal como o de muitos pais da época do pobre e rural Minho era que os filhos, mal fossem adolescentes, emigrassem para amealhar fortuna. Uma riqueza conquistada com suor e lágrimas de saudade no grande e promissor país irmão, o Brasil.

No dia 12 de janeiro de 1899, José Camello, de apenas 13 anos com o rosto marcado de borbulhas trazidas pela tenra idade, e o seu irmão Domingos, de 15 anos, pedem passaporte para irem para o Rio de Janeiro. O outro irmão, Manuel irá ter com eles mais tarde. A mãe Ermelinda ficou tão desgostosa com a partida dos filhos... Dizia que morreria, jamais iria aguentar a separação! Segundo a tradição oral familiar morreria pouco tempo depois com um ataque cardíaco em plena feira de Celorico de Basto. 

Registo de Passaporte de José Camello Teixeira e irmão Domingos, 12 de janeiro de 1899.
In Arquivo Distrital de Braga, Registo de Passaportes, 1 de fevereiro de 1896 a 6 de fevereiro de 1899.
Entrée de Rio: De Nova Cintra, c. 1890.
Baía de Guanabara, Rio de Janeiro, Brasil.
Fotografia de Marc Ferrez, acervo Fundação Biblioteca Nacional.
In brasilianafotografica.bn.br

No dia 12 de janeiro o navio que os levava entra na Baía de Guanabara e ao fundo a deslumbrante cidade maravilhosa do Rio de Janeiro! Com eles chegaram mais dois amigos feitos pela ocasião, José Dias Corrêa e Manuel de Carvalho. Ficariam amigos para sempre do "Seu Camello".


Vista geral do centro do Rio, destacando-se a Igreja da Candelária,
cuja construção iniciou-se em 1775.
Fotografia de Marc Ferrez, 1886, Rio de Janeiro, Brasil.
In literaturaeriodejaneiro.blogsopt.pt
Ao desembarcarem no reboliço da agitada cidade tropical trataram rapidamente de procurar trabalho. O destino quis que o Seu Camello encontrasse trabalho num bar de um alemão, na rua General Câmara, nº 246, em pleno centro, perto da famosa Igreja da Candelária.

Rua General Câmara, onde se situava originalmente
o Bar Bico Doce. 1920, Rio de Janeiro, Brasil.
Como a maioria dos emigrantes começou por baixo, mas como pessoa trabalhadora e séria que era rapidamente conquistou a admiração do patrão. A ânsia de poupar era tanta, provavelmente para não desapontar o pobre pai cheio de esperanças de ver o filho triunfar na vida, que pedia ao patrão para guardar todo o salário ganho, apenas ficava com as gorjetas para os gastos necessários. Gastos... Seriam poucos certamente, pois dormia também no bar, talvez alguns gastos com a sua boémia "incontrolável"!

Um dia o seu patrão morreu e a viúva como não tinha dinheiro para lhe dar os salários guardados propôs a venda do bar, e assim foi... A 4 de fevereiro de 1909 nasce o famoso bar carioca "Bico Doce - Refrescos e bebidas finas, chopps e sandwiches - J. Camello Teixeira". 

O negócio foi correndo de vento em popa! No seu bar, frequentado também pela elite carioca, eram presenças assíduas o famoso intelectual, deputado, senador e ministro Ruy Barbosa e o Barão de Rio Branco.

E o Seu Camello foi cada vez mais mergulhando na boémia carioca. Festas, noitadas, muita farra, bebida, mulheres... Adorava divertir-se, e claro o culminar da diversão era o Carnaval carioca, com o ritmado samba. Metia-se em tudo, bastava ouvir o som do pandeiro e do cavaquinho e lá estava ele, no samba. Não foi por acaso que foi diretor de duas agremiações carnavalescas.

Mas, um dia a alegria da vida noturna foi ofuscada pela luz do dia. Conheceu o amor da sua vida!

José Camello Teixeira e Glória Siqueira da Vinha no dia do seu casamento civil. Rio de Janeiro, 1916.
Fotografia gentilmente cedida pela família.
Chamava-se Glória Siqueira da Vinha, brasileira, filha natural do negociante português José Ribeiro da Vinha e de Prudenciana Siqueira. O seu amor encontrou-o na casa do seu amigo de viagem, o Corrêa. A jovem Glória, já orfã de pai, de apenas 14 anos estava lá hospedada, depois de ter saído de casa por desavenças com a sua mãe Prudenciana por não concordar com o seu terceiro casamento. Achava ela que este homem só lhe traria a desgraça e a dilapidação da fortuna deixada pelos dois maridos anteriores. E o futuro daria-lhe toda a razão!
3º casamento da mãe de Glória, D. Prudenciana Siqueira, com António Alves
Correia. Foram padrinhos José Camello Teixeira e sua mulher. Na foto estão
também presentes os parentes, os amigos Corrêa e Carvalho com as mulheres.
Rio de Janeiro, 1917.
Fotografia gentilmente cedida pela família.

Seu Camello foi conquistado pelo estômago, provou na casa do amigo uma deliciosa aletria feita pela Glória e ficou rendido pelo doce e pela jovem. Já diria o povo, "adoçou-lhe a bico" e o "bico doce" já ele tinha!

A diferença de idades entre ambos ainda era grande, mas mesmo com os curtos 14 anos de Glória e os maduros 31 anos de Seu Camello, casaram no dia 7 de outubro de 1916.

Seu Camello estava doente... A vida desregrada da sua alma boémia tinha-lhe trazido muitos problemas de saúde, mas o amor curou-o literalmente! A "comidinha" e os cuidados da sua mulher, agora chamada de Glória Vinhas Teixeira, devolveram-lhe novamente a saúde, quase milagrosamente o figado afetado pelo excessos da noite regenerou, com uma ajudinha também de temporadas na Estação de Águas de São Lourenço, em Minas Gerais. Realmente o AMOR verdadeiro tudo cura!

E pouco tempo depois vieram os frutos desse grande amor, em 1918 a filha Ermelinda e em 1920 a filha Luíza.

A boémia de Seu Camello ficou-se pela sua alma e pelos seus prósperos negócios dos bares do Bico Doce e do Fluminense Football Club. Tornou-se um verdadeiro homem de família, apesar de continuar com um pé no samba!
A família toda junta, com José Camello Teixeira,
Glória Vinhas Teixeira e as filhas Elza, Ermelinda e Luíza.
Porto, 1922.

Ermelinda, Elza e Luiza.
Porto, 1922.
Fotografia gentilmente
 cedida pela família.
Mas depois de tantos anos longe da sua terra natal, chega uma carta do seu pai para o irmão Domingos para que este voltasse a Celorico para tratar de problemas da herança. O irmão de costas voltadas para o pai, pois sempre o culpou da morte da mãe, recusou-se a ir. Seu Camello arranjou uma solução... O irmão Domingos ficou à frente dos seus negócios e ele e a família foram para Portugal passar uma temporada e resolver a questão da herança com uma procuração passada por Domingos. E lá foram eles num vapor de luxo, com bábá para as crianças, em setembro de 1921. A chegada não podia ser mais esplendorosa para os olhos do seu pai que tanto ambicionava com a chegada do "brasileiro torna-viagem" que havia triunfado na vida.

No Porto, em 1922, nasce mais uma filha, a Elza, que ficou conhecida como "a portuguesa". Ela e a Luíza são batizadas em Cabeceiras de Basto.

Mas a estadia em Portugal acaba quando Domingos envia uma carta a dizer que os negócios precisam urgentemente que o irmão regresse! E assim foi... Mas levam mais uma pessoa, uma "pessoinha", Glória vai grávida da filha Lourdes.

Inauguração da nova casa em Ipanema, na Rua Prudente de Morais nº 202,
atual 504. Em baixo o casal e em cima, na varanda os filhos.
 Rio de Janeiro, 1932. Fotografia gentilmente cedida pela família.
Toda a família Camello Teixeira na
cascatinha da Floresta da Tijuca.
Rio de Janeiro, 1935.
Fotografia gentilmente cedida pela família.
A situação financeira novamente estabiliza e cresce com a astúcia e "olho para o negócio" de Seu Camello. Em 1927 nasce mais um filho, o tão esperado filho varão, a quem deram o nome de João. E com a família tão grande, resolve então construir a sua casa de família no famoso bairro de Ipanema. Em 1932 toda a família muda-se para a nova casa, uma bonita vivenda que espelhava todo o esforço do emigrante que tinha vindo de Celorico de Basto com o sonho de fortuna.

Mas de repente a sombra do destruidor progresso abateu-se sobre o Bico Doce... Em plena Segunda Guerra Mundial, frequentado por alemães e ingleses, que o Seu Camello mantinha em clima de paz, chegou a notícia que o bar iria ser demolido! Aliás iriam ser derrubados bairros inteiros em pleno centro histórico do Rio para dar lugar à obra faraónica da Avenida Presidente Vargas, sonho de Getúlio Vargas para a sua capital. Até a famosa Praça Onze onde na altura eram feitos os desfiles das escolas de samba e centro da boémia carioca foi quase destruída e drasticamente reduzida.

Avenida Presidente Vargas inaugurada a 7 de setembro de 1944.
In historiadorio.wordpress.com
Paciência... Veio tudo abaixo! Mas o Bico Doce renasceu como uma Fénix noutro local da cidade, no Beco das Cancelas, entre as ruas do Rosário e de Buenos Aires. Local bem mais pequeno, mas que manteve o espírito boémio que tanto o caracterizava e o mais importante de tudo, o Seu Camello atrás do balcão, com a sua "paciência de Jó", aconselhando prudência no consumo alcoólico. Até parecia que não queria fazer negócio! Claro que não, mas como a sua experiência já era "velha como o diabo" preocupava-se com todos. Chegava até a levar a casa aqueles que adormeciam inebriados com cerveja e cachaça.
Comenda atribuída a José Camello Teixeira
da Irmandade do Santíssimo Sacramento
da Candelária.
Fotografia gentilmente cedida pela família.

Mas Seu Camello não era homem de poucas paixões, além da família e do Bico Doce, havia uma terceira, a religiosa, a de Nossa Senhora da Candelária. Pertencia à Irmandade do Santíssimo Sacramento da Igreja da Candelária, que o agraciou Comendador e Irmão Benemérito em 1954. Foi uma vida dedicada durante 67 anos como diretor do culto.

Celebração das Bodas de Prata do casal na Igreja de Nossa Senhora
da Candelária. Rio de Janeiro, outubro de 1941.
Fotografia gentilmente cedida pela família.
E foi na "sua" Igreja da Candelária que celebrou sempre as bodas da sua aliança com o seu grande amor, a mulher Glória. Primeiro as de prata e depois antecipadas 10 anos, as de ouro, pois a mulher que era muito mais nova do que o Seu Camello, temia a sua morte.

Seu Camello e sua mulher com os filhos, netos, genros, futura nora
e sogra da filha Luiza. Fotografia tirada na casa de Aluízio e Luíza Lins.
Gávea, Rio de Janeiro, 1951.
Mas quis a vida que o destino fosse o contrário... A 19 de março de 1962 morre Glória Vinhas Teixeira. Parecia que a vida ia terminar para Seu Camello, mas não! Sete dias depois da morte do seu grande amor, o amor que o havia curado e dado novo rumo, coloca um fato e gravata pretos, cor essa que nunca mais deixou e foi para detrás do balcão do Bico Doce atender os boémios clientes.

Os anos passaram, passaram, passaram... E nunca abandonou as suas três paixões. A Candelária, a família que o rodeava de imenso carinho e que ele tinha tanto orgulho e sua ligação nunca perdida com o velhinho Bar Bico Doce.

No dia 18 de outubro de 1971 a poucos dias de fazer 86 anos a luz da vida de Seu Camello apagou-se! Nas palavras da sua neta "foi-se embora como viveu, sem dar trabalho".

Aquele doce português, vindo da terras das camélias, que um dia cruzou o oceano rumo a uma vida melhor, deixou por terras brasileiras a sua alma, a alma de um português que adorava a vida, que adorava a alegria e que um dia, a sua ALMA BOÉMIA foi "curada" pelo amor da sua querida ALMA GÉMEA.

"Você sabe bem minha doce alma gêmea que quem tem a alma boêmia não consegue segurar..." 
Samba Alma Boêmia.




Músicas Alma Boêmia/Você é o Espinho e não a Flor/A Vitória demora mas vem
Arlindo Neto, Renato Milagrese Juninho Thybau, 2012.


Agradecimentos especiais:
A Maria da Conceição Lins que me despertou o interesse pela doce história e que tanto colaborou na pesquisa documental;
À neta de Seu Camello, Elisabeth Teixeira Lins, pela fabulosa recolha documental e oral e cedência de fotografias da família;
À restante família que colaborou de diversas formas: Mateus Pereira Lins, Antônio Carlos Dias Corrêa, Pericles Memória Filho, Tânia Teixeira Memória e Nelson Dias Corrêa Filho.

8 comentários:

  1. Adorei saber a historia da vida de Seu Camello, história de mais um portugues que deixou seu "cunho" pessoal no Brasil...

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  2. Muito obrigado! Muitas são as histórias que unem os dois povos e principalmente a região das Terras de Basto às Terras de Vera Cruz. Cedo emigravam para triunfar na vida e tornar viagem às origens.

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  3. História tão interessante e bem contada. Adorei como sempre. Parabéns

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  4. Gostei e continue com as suas histórias da história deste país . Bem haja!!!

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  5. Gostei muito de saber uma parte da minha história de família. Obrigada.

    Odete Teixeira

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  6. Gostamos muito de saber uma pequena parte da nossa história de família. Obrigada.
    Elsa e Odete Teixeira (sobrinhas netas de José Camêlo Teixeira)

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  7. Muito obrigado! Foi um gosto enorme escrever esta história de família, família essa que contribuiu em muito para todos os conteúdos. E o resultado final foi este! Um abraço. Joaquim Castro Gonçalves

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  8. É um prazer ler esta história das pessoas de Basto!...
    Gente de valor, trabalhadores, com sucessos na vida.
    Sou de Basto a minha familia tem alguma história na região por parte dos meus Avós.
    Um orgulho pertencer a essa gente, e região.
    Eugénio Brites

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