Os Mortos de Sobrecasaca

"Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis, alto de muitos metros e velho de infinitos minutos, em que todos se debruçavam na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca. Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos. Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava, que rebentava daquelas páginas."

Carlos Drummond de Andrade, Os Mortos de Sobrecasaca (Sentimento do mundo, 1940)

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Os Brasileiros

"Lenço dos Namorados" - Com origem
ainda no séc. XVIII, estes lenços
 eram uma tradição minhota para
 as raparigas oferecerem aos seus
 namorados ou amados. Elas bordavam-nos
 com quadras populares, normalmente com
 erros ortográficos, que traduziam a forma
 como se falava.
"Meu Manel bai pró Brazil
Eu tamem bou no bapor
Gardado no coração
Daquele qué meu amor".

Esta quadra popular, usada nos "lenços dos namorados", é o mote para começar esta história... Uma história que nos leva do Minho até ao Rio de Janeiro e que começa em... 

1896, 18 de Março, nasce no lugar de Baloutas em Painzela, Cabeceiras de Basto, Américo da Silva Castro filho do meu trisavô Joaquim José, o "Manco". 

Américo da Silva Castro
12 de março de 1916, Rio de Janeiro.
Américo, ou Amériquinho como ficou conhecido, nasceu no seio de uma família numerosa e abastada cuja fortuna teria vindo em grande parte do Brasil, trazida pela mão de seu pai, negociante e capitalista, como se dizia naquela altura, mas apesar de tudo viviam sem grandes luxos e ostentação, pois o isolamento e a ruralidade daquele lugar assim os dispensavam.  

Quis o destino que Américo, por ironia do seu nome, fosse para a América, a do Sul, ainda muito novo, quando os seus 17 anos apenas lhe tinham permitido uma vida de estudante. Em setembro de 1913 o seu pai acompanhou-o até ao cais de embarque onde estava o vapor que o levaria até ao Brasil. Não sei se lhe teria sido oferecido algum "lenço dos namorados" por alguma pretendente, mas Américo quis seguir os passos de seu pai e partiu sozinho. Possivelmente recomendado a alguém, um familiar, um amigo da família bem colocado nos negócios, talvez...

Verso da fotografia de cima, com dedicatória
para o seu pai, o "Manco".
A emigração para o Brasil estava no auge! Não eram só os mais pobres, sem perspetivas de futuro, que partiam em busca do sonho brasileiro, também os das familias mais endinheiradas, como era o caso de Américo, iam em busca de uma riqueza só para si, pois em Portugal, país mergulhado numa crise profunda desde o final do séc. XIX, as perspetivas eram poucas, e para Américo os irmãos eram muitos, pelo menos no que toca à divisão da herança! Se fosse rapariga teria de arranjar bom marido, de boas famílas, bem colocado finaceiramente! Se fosse rapaz tinha de se fazer à vida! E assim foi...

Foi para o Rio de Janeiro, onde também teria estado o seu pai e o seu tio José, para o que chamavam a "vida comercial". E nunca mais voltou!

O contato com a família manteve-o pelas cartas que mandava frequentemente para o seu pai e para o seu irmão mais velho Francisco, ou Chiquinho, como não podia deixar de ser sempre com o diminutivo "inho" acrescentado ao nome do "morgado".

Américo não devia ter poderes advinhatórios, mas a sua partida para o Brasil em 1913, valeu-lhe certamente não ter sido mobilizado para Angola ou Moçambique ou para o Corpo Expedicionário Português, nos combates da Primeira Grande Guerra Mundial (1914-1918).

Américo da Silva Castro - 1920, Rio de Janeiro.
(Photo-Valverde, rua dos Ourives, 3, 2º andar, RJ)
Já perfeitamente estabelecido no Rio, Américo conheceu uma doce mulata por quem se apaixonou. Doce e muito bonita, que contrastava com o sui generis nome de Raymunda. Nome algo mediévico que nada tinha a ver com a imagem da referida tia, cuja fotografia abaixo revelou uma bem parecida mulata vestida com casaco de peles em pleno verão de um país tropical... Américo casou e nasceu a sua primeira filha, Palmira e poucos anos depois outra, a Maria de Lourdes!

Em 1923 morre Joaquim José, o "Manco". A sua filha mais nova Olaia, ou Olaínha, ainda solteira, rica, já com a sua parte da herança, resolve também ela deixar Cabeceiras de Basto e ir viver para o Rio de Janeiro, junto do seu irmão Américo.

Américo da Silva Castro com a sua mulher Raymunda e filha Palmira, do lado esquerdo.
A ladeá-lo pela direita, a sua irmã Olaia da Silva Castro.
Rio de Janeiro, 8 de dezembro de 1928.
(Fotografia Carlos Pederneiras, rua Senador Soares, 48, RJ)
Verso da fotografia acima, enviada por
Américo para Portugal,
com dedicatória para o seu irmão
Francisco da Silva Castro.

Olaia, menina bonita e rica, poucos anos ficou solteira na "cidade maravilhosa" e casa a 25 de Junho de 1931 com o português Adelino. Uns anos mais tarde nasce Teresinha, única filha do casal, que recebeu o nome da irmã de Olaia que havia morrido muito nova, de parto, em 1910, na véspera da implantação da República em Portugal.

Casamento de Adelino e Olaia da Silva Castro
Rio de Janeiro, 25 de Junho de 1931.
Entretanto a "vida comercial" de Américo correu-lhe muito bem e resolveu investir o seu dinheiro e experiência como negociante numa típica loja que quase tudo tinha, muito mais do que uma mercearia, quase uma loja "gourmet", como se diz hoje, onde vendia muitos produtos importados de Portugal, principalmente o vinho verde e o azeite. Dizia ele que os portugueses que por lá estavam e também os brasileiros, tal como os bons frequentadores de tavernas, apreciavam o vinho forte, o chamado "tinto carrascão", com sabor intenso e muita cor que pintava o bigode do português dono de padaria! Américo chamou ao seu estabelecimento, em homenagem aos seus dois países, o de nascimento e o de acolhimento, de "Armazém As Duas Nações"!

Américo da Silva Castro no seu "Armazém As Duas Nações"
Rio de Janeiro, dezembro de 1940.

1ª Comunhão de Palmira e Lourdes
Rio de Janeiro, 8 de dezembro de 1935.
(Photographia Federal, rua Floriano Peixoto, 147, RJ)
Quis o destino que alguns anos mais tarde a vida se complicasse financeiramente para Américo! O seu armazém foi vendido assim como todos os bens que ainda conservava em Portugal, como casas e propriedades agrícolas, alguns herdados dos seus pais, outros fruto de investimentos seus, segundo orientação do administrador dos seus bens em Portugal, o seu irmão Francisco. Também o seu amor por Raymunda se ressentiu chegando mesmo a estarem separados e a pedirem o divórcio ou "desquite" como se diz por terras brasileiras.

Os anos foram passando e apesar de todas estas infelicidades a vida foi-se recompondo, e notícias chegaram da reconciliação de Américo e Raymunda, ele já com a sua reforma ou "aposentadoria" assim como do sucesso profissional das suas filhas, uma delas, Lourdes que enveredou pelo ensino, chegando a ser proprietária de um colégio.

Mas o tempo encarregou-se de apagar o rasto das notícias do tio Américo e da tia Olaia!

Teresinha de Castro no Carnaval
Rio de Janeiro, 25 de Fevereiro de 1936.
Ainda hoje na família se fala dos "brasileiros" que partiram para nunca mais voltar! E o mais surpreendente de tudo é que ao descobrir estas fotografias nos "baús perdidos" encontrei as únicas pessoas de toda a família cujos rostos possuíam traços fisionómicos demasiado parecidos comigo, com a minha irmã e com o meu pai.

Estes "brasileiros", assim chamados em Portugal, como se ao emigrarem tivessem perdido a sua nacionalidade, nunca deixaram de ser "os portugueses" no Brasil... Portugueses que como tantos outros partiram e não regressaram e ajudaram a construir e a formar uma das maiores nações do mundo, o Brasil.

Quem sabe um dia, a distância que separou esta família e o tempo que lhes apagou o rasto poderá mudar e os descendentes destes "brasileiros" possam conhecer os descendentes dos "portugueses" desta família do "Manco"...

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